domingo, 3 de novembro de 2013

Exéquias ao Chefe







Na capela o respeitoso silêncio é quebrado:

─ Conheci-o aos 18 anos, era um jovem rebelde, um anarquista.

─ Não diga...

─ Aos vinte e pouco era comunista e ateu, andava com "O Capital" para cima e para baixo


─ Que absurdo...

─ Aos trinta e poucos virou neoliberal e empresário - Ficou milionário.

─ Ainda bem!

─ Aos 60 anos era um ultraconservador - Ferrenho defensor da tradição, família e propriedade.

─ Deus Abençoado!

─ Olhe só agora a cara do desgraçado, não vai poder levar um dólar sequer para a cova.

─ Pois é...

sábado, 2 de novembro de 2013

Faltando Flores Lúcidas...







A sala era escura, uma pequena lâmpada iluminava o espaço ocupado pelo prisioneiro que olhava o vazio em absoluto silêncio. Seus captores tinham usado todos os métodos conhecidos para tentar fazer que ele desse com a língua nos dentes e já estavam cansados de tanto torturá-lo.



─ Vai sargento, gira a manivela, vc. tá dando mole prá esse vagabundo! – gritava o oficial para o subalterno que suava seu sujo uniforme girando velozmente o dínamo.


Só sons ocos, gritos guturais, saiam da boca do prisioneiro a cada corrente de elétrons que atravessava seu corpo. Mas da sua boca não saia palavra alguma. Eram gritos de um animal ferido, sem expressão, a não ser a dor que ecoava pela sala fétida, que cheirava a urina velha e fezes dos torturados que perdiam o controle do esfíncter.

─ Fala animal, vamos te matar se tu não der o serviço! – dizia o oficial preocupado. O curso que tinha feito no Panamá com a CIA de anti-insurgência dessa vez não estava servindo para nada. Esse era cascudo. Tinha medo de passar da medida e acabar levando a óbito o comuna. Seus superiores não iam gostar nada disso, pois os maiorais queriam saber dos comparsas do rapaz, o nome dos integrantes da célula antes de jogá-lo no mar junto com outros lideres comunistas.

O oficial saiu da sala, foi tomar um café ruim que tinha na carceragem para ver se afastava o cansaço. Já era hora de estar em casa descansando com a patroa e não nesse buraco de ratos. O que não se fazia para ganhar uma promoção hoje em dia. Não queria dizer que ele no fundo não gostasse de tirar informações desses vermes. Quando era uma comuna jeitosa então era a maior diversão. A equipe se divertia obrigando elas fazerem de tudo e prometendo que se fizessem não iam mais judiar delas. Mas sempre judiavam. Esse pensamento de alguma forma o acalmou. Era muito raro encontrar um deles assim tão resistente. Diacho, que merda...

A mente dele não estava mais ali, estava passeando por alguma praça do inverno europeu, Luísa ao seu lado rindo de suas piadas sem graça, ambos sentados, no muro da fonte congelada. Depois vinha um flash deles deitados naquele pequeno quarto que tinha sido destinado para eles, seus corpos se tocando, o prazer sem fim que preenchia todo o espaço e não dava lugar para a dor. Tinha treinado, foram anos de treinamento entre homens sábios com suas roupas monásticas, manter o vazio, Sunyata, o não-ser, respiração lenta, cadenciada, as atividades corporais em baixo metabolismo, uma muralha de nada protegia sua consciência do sofrimento, e impedia a sensação física de dor toldar seu pensamento. Só as memórias vinham como um consolo. Ele não estava mais lá, nem Luísa. Ela fora uma das primeiras a cair quando eles voltaram para libertar o Brasil da ditadura. Um companheiro tinha sido pego pela repressão e depois das sessões nos porões de algum quartel tinha entregado seus nomes e codinomes e sua localização para os agentes inimigos. A morte dela foi rápida, quase indolor, quando cercaram o apartamento onde nos escondíamos, ela pegou a 9 mm e deu um tiro na própria fronte. Era o que diziam os estarrecidos jornais situacionistas. Diziam que tinha se matado por fanatismo. Coisa de comuna fanático, alardeavam. Na verdade ela era uma mulher sensível e não podia suportar qualquer sensação de dor e temia entregar a operação caso fosse pega. Ele não estava lá naquela hora, não pôde vê-la, nem compartilhar seus últimos momentos.

─ Corre aqui Capitão ! – gritou o sargento.

─ O que houve seu infeliz, que merda você aprontou !

─ Acho que foi demais, o homem tá morrendo.

─ Desamarra o desgraçado! - Eu não dei ordem dele morrer ainda – falou o oficial, já imaginando a bronca que ia levar do coronel.

─ Deixa ver... deixa ver...

O oficial tentou uma massagem cardíaca, mas o coração do prisioneiro estava quase inaudível, um sopro, um fio que separava a vida da morte. Aproximou-se do rapaz, o corpo nu, sangrento, todo sujo de excrementos e percebeu que ele queria dizer alguma coisa, aproximou o ouvido da boca do moribundo e pôde perceber somente três palavras que ficariam na sua cabeça para o resto da sua vida:

─ Faltando flores lúcidas... - Então, para desespero do militar, o torturado expirou.