terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Pastor no Espelho




O Pastor conduz o rebanho no culto, fiéis acotovelam-se para prestar atenção nos fenômenos, milagres e demonstrações de cura que ocorrem em profusão e ululam sem pudor para cada palavra enlevada que ele profere aos gritos segurando alto o livro sagrado. Aleluias reverberam pelo templo. Experiente nas coisas da fé ele interiormente conta de cabeça o dízimo naquela noite de culto, contente ao observar a casa lotada, a coleta com certeza será gorda. Olhos vermelhos, cheio de concentração invoca a maldição para os demônios que toda noite exorciza do corpo dos crentes com gestos teatrais, como um Moisés que divide as águas do Mar Vermelho com seu cajado, ou melhor, imita com maestria os trejeitos daquele ator norte-americano do filme com grandiloquência extasiada e mística.

Aquela noite a coleta, como havia previsto, era acima da média e seus colaboradores que passaram a sacola de óbulos ao fim do culto levaram a féria para os fundos do templo onde máquinas de contar cédulas confirmavam a fidelidade dos fiéis através da fria visão cartesiana de dígitos que aumentavam nas pequenas telas. Depois da contagem, pelo avançado da hora, as notas iam descansar num robusto cofre forte, de última geração adquirido pela congregação, que só o pastor detinha a combinação, para serem depositadas as sempre crescentes somas no banco na manhã do dia seguinte.

Após a conferência dos valores ele pagou e despediu os auxiliares com uma prece curta de graças pelas indulgências alcançadas, pois já estava cansado de tanta reza desperdiçada. E foi guardar os maços de dinheiro contados e acionar os alarmes da caixa-forte para não dar sorte ao azar.

Saiu da antecâmara e vislumbou o templo que imaginava vazio e recendia a cheiro de povo pobre, gente simples que todos os dias de culto iam deixar suas migalhas arduamente batalhadas para engordar a fé que tinham nesse deus que tudo prometia e tudo curava representado na voz dele: “O Escolhido”, como era chamado pelos discípulos mais exaltados.

Para sua surpresa um homem de capote preto e chapéu largo que quase tapava todo o rosto estava sentado comodamente no meio da plateia do oratório. Cabeça baixa, este sujeito de tipo incomum não fez movimento algum quando o pastor se aproximou.

─ Irmão, o culto já terminou e estou fechando o templo – Falou o pastor com alguma preocupação — os seguranças não haviam percebido a presença desse infeliz quando trancaram as portas da frente? – Esse bairro é super perigoso - pensou o guia de almas.

─ O culto terminou, eu sei, mas sempre costumo vir aqui toda a noite para acompanhar seus sermões pastor. Tenho uma verdadeira obsessão em escutá-los - impossível de resistir. Com certeza você recebeu um dom divino. Não é por nada que o chamam de “O Escolhido”. Deus tem com certeza um estranho senso de humor.

Entre envaidecido e receoso, e notando não ter conseguido ainda ver o rosto do homem misterioso, essa estranha presença em hora tão tardia, pensou em chamar o segurança da noite e acabar logo com aquela situação constrangedora. Por outro lado poderia ser um fiel endinheirado e ficaria com certeza ofendido em ser expulso do templo. Talvez seu rosto tivesse algum defeito, um acidente o tenha desfigurado e estivesse à procura de alguma graça. Achou melhor continuar a prosa apesar do cansaço.

─ Como é mesmo seu nome?

─ Me chamam de muitos nomes.

Um arrepio correu a espinha do pastor. Só falta ser algum antigo colega de cela que veio cobrar dívida de jogo ou drogas que tinha comprado e esquecido de pagar. Só podia ser um desafeto da época que ele era um pecador assumido na cana, ou quando vendia apostas do bicho nas esquinas.

─ Não pense mal de mim – disse o homem misterioso, tenho total admiração pela sua pessoa já faz tempo.

─ Não sou de levar a mal nada, nem mesmo a sua presença nesse horário impróprio, mas estou cansado e preciso ir para casa descansar. Sabe cumé, amanhã é outro dia e Deus ajuda a quem cedo madruga.

─ É verdade, talvez vendo meu rosto você consiga entender a razão da minha aparição por aqui. Vim fazer uma reivindicação.

─ Reivindicação?! – Já entendi, mas não devolvemos o dízimo depois que ele foi ofertado, é regra da nossa religião e fato amparado por lei.

─ Você não entendeu nada mesmo – disse o homem retirando lentamente o chapéu que cobria seu rosto e mostrando a face até então encoberta.

Um grito nada másculo partiu da boca do pastor que ficou completamente em estado de choque. O homem misterioso, ou seja lá o que for, era a sua cara, parecia um gêmeo, mas ele sabia que não tinha irmãos e ficou ainda mais aterrorizado ao se deparar com uma figura que era a sua imagem como que refletida num espelho, cada ruga, até aquela cicatriz que tinha da briga no presídio.

─ Vim reivindicar o meu templo oras – Falou sua cópia escarrada – Seu átimo de vida na terra enganando as pessoas já terminou, vim levar a sua alma, vou continuar sua obra de hoje em diante, para dar mais peso ao negócio e quem sabe expandir, vou candidatar-me para algum cargo político, o céu, ou melhor o inferno é o limite.

─ Mas como, se eu tenho feito tudo certinho, reunido o dízimo, lavado o dinheiro para os homê do partido e nunca transigi das minhas funções junto aos fiéis e agora Deus manda um anjo para me substituir, que absurdo !

─ Eu não sou um anjo qualquer, eu sou Legião, o próprio dono do inferno e não foi Deus que me enviou.

Ao terminar esse diálogo insólito energias ctônicas estremeceram o templo e o pastor foi aos poucos virando sombra, esfumou-se e o outro, sua sombra, foi virando ele e ambos aglutinaram-se em um só ser. A criação diabólica trancou as portas do templo como era costume seu outro eu trancar. Entrou na sua Mercedes último tipo e seguiu para casa, pois na noite seguinte o culto com certeza ia bombar.


Julio Kling