segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A Pressão da Relação






Teo e Rafaela contraíram núpcias, uma modesta cerimonia para trezentas pessoas em uma pequena capela da moda, que necessitou sofrer restauração de sua estrutura logo após o concorrido evento, consequência do grande bulício da efeméride. Ganharam muitos presentes, pois ambos vinham de família tradicional, rica e numerosa e os respectivos sogros eram pessoas bem posicionadas na sociedade e com cargos no governo, nas altas esferas da administração pública, e, portanto muitos representantes e fornecedores interessados no negócio público acharam por bem agradar os noivos com pequenos mimos. O enxoval estava completo: receberam faqueiros de prata, cristais da Boêmia, tapetes persas, objetos de cerâmica importada, tudo o que um jovem casal poderia querer. Até mesmo um apartamento mobiliado com móveis sob medida em um bairro bem localizado e da moda bem próximo de onde trabalhavam. Após a lua de mel no Caribe voltaram às suas atividades normais e procuraram assumir seus respectivos papéis como um casal normal e apaixonado que eram.

Entre todos os presentes valiosos Rafaela descobriu em seu armário uma vistosa panela de pressão importada, que ela lembrou ter sido presente de uma tia distante, que morava no exterior. Pensou utilizá-la para cozinhar naquela noite. Como boa analista de sistemas, funcionária exemplar de uma empresa de alta tecnologia, acreditou ser fácil decifrar seu funcionamento, que sabia por informes da mãe que facilitava e diminuía o tempo de cozimento dos alimentos. Queria impressionar Teo, mostrar que havia herdado alguns dos dotes culinários maternos. Imaginou um prato exótico que tirou a receita na internet e um jantar romântico à luz de velas para criar o clima. Colocou todos os ingredientes na panela, uma receita de moqueca que a mãe lhe tinha indicado. Quando tinha já se passado algumas horas que a panela estava no fogo e o cheiro do cozido se espalhava pelo apartamento Teo chegou.

─ Humm! O cheiro está bom, estou louco de fome. – avisou o rapaz cheio de paixão pelo desvelo da esposa em preparar um pequeno banquete para os dois.

─ É a receita da mamãe, mentiu, aquela que você tanto gostava amadinho, a moqueca.

─ Hum que cheiro bom! – Será que está pronta?

─ Deve estar, está há duas horas no fogo.

─ Duas horas? Não é demais? 

─ Não sei, não consegui entender o manual de instruções da panela, estavam escritas em ideogramas chineses, e não tinha versão em inglês, minha tia deve ter comprado na China mesmo, a pobrezinha.

Rafaela descobriu que antes de abrir a tampa da panela tinha que retirar toda a pressão e quando já parecia que tudo estava pronto abriu a comporta da panela que lhe bafejou um ar quente e úmido que quase acabou com sua chapinha. Dentro, uma sopa. Era impossível distinguir as muitas postas de salmão rosa de primeira que tinha colocado dentro com tanto esmero junto aos temperos. Foi uma decepção, pois aquele caldo nada parecia com o que sua mãe fazia. Tinha virado um nada.

─ Meu deus! Que porcaria é essa!

Teo ainda tentou dizer alguma coisa para Rafaela, chegou a argumentar que a sopa não parecia tão má assim, mas seus comentários só a deixavam mais irritada. Afinal, ela não tinha estudado em uma das melhores universidades do país? Como poderia ter errado uma coisa tão simples quanto cozinhar uns peixes em uma panela. E foi para seu quarto chorar no colchão de molas importado, com duas camadas, ganho no casamento, regalo do principal fornecedor da secretaria onde o pai era o responsável pelo patrimônio. E ela ficou assim inconsolável até o dia seguinte.

A bem da verdade, por causa do noivado prolongado e para que ambos pudessem formar-se e conseguir bons empregos, nenhum dos dois tinha experiência alguma das coisas práticas da vida e tinham vivido até então na casa dos pais, sob suas respectivas proteções, onde empregados prestimosos cozinhavam e arrumavam tudo e os progenitores suportavam suas despesas e caprichos sem nunca ter sido necessário que tivessem que cuidar de assuntos tão corriqueiros e sem importância como fazer a própria comida ou lavar as próprias roupas.

No dia seguinte, Teo, inconformado, resolveu assumir a responsabilidade de decifrar aqueles verdadeiros hieróglifos que constavam nas instruções da panela. Afinal sua graduação em engenharia de processos deveria ser suficiente para que tivesse proficiência até mesmo num mecanismo rudimentar como aquele, uma máquina a vapor, que lembrava os primeiros estágios da Revolução Industrial, uma simples panela de pressão. Colocou alguns legumes, água até a metade, como havia visto no Youtube e ligou o fogo. Colocou os pratos na mesa da sala, acendeu as velas e quando Rafaela chegou abriu um vinho importado que sobrou do buffet da cerimonia de casamento e serviu nas taças de cristal novinhas.

─ Ah meu amor! – disse Rafaela enternecida pela atenção do rapaz.

─ Não se preocupe querida, agora está tudo sob controle.

Os dois se olharam com ternura, tinham aquela química dos recém-casados, as brasas estavam sempre prontas para a fogueira da paixão avassaladora e assim foram dos carinhos aos beijos, dos beijos aos abraços e logo ele carregava ela para o colchão de duas camadas, de onde, ou por ação do vinho ou pela volúpia da situação esqueceram do mundo a volta, de tudo mesmo, até daquele ser analógico que soltava pequenas ondas de vapor enquanto a válvula girava diabólica pela ação ígnea do fogão. Após o intercurso, o casal abraçado em meio as suas juras de amor, Rafaela exclama:

─ Você desligou o fogo da panela né, Teo?

Teo foi tomado de um calafrio, na verdade a depressão pós-coito transformou-se em pânico extremo e ele, recuperado do torpor, deu um salto da cama em direção à cozinha para tentar salvar o jantar, foi quando houve a explosão. Os bombeiros depois afirmaram que era um problema comum, já tinham atendido casos semelhantes sem conta. Rafaela chorava sem controle, a louça nova, a prataria, os cristais da Boêmia, os móveis da cozinha, o fogão embutido, a geladeira importada, tudo destruído pela maldita panela de pressão chinesa. Teo nada tinha sofrido, mas instintivamente sabia que seu casamento nunca mais seria o mesmo, tinham atravessado uma linha invisível e tênue onde a admiração incondicional da esposa tinha terminado definitivamente. O olhar fixo de ódio dela para as mobílias destruídas e o apartamento enegrecido, as cortinas queimadas, o mármore da pia rachado era o sinal de que tudo tinha mudado na vida deles para sempre.


terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Pastor no Espelho




O Pastor conduz o rebanho no culto, fiéis acotovelam-se para prestar atenção nos fenômenos, milagres e demonstrações de cura que ocorrem em profusão e ululam sem pudor para cada palavra enlevada que ele profere aos gritos segurando alto o livro sagrado. Aleluias reverberam pelo templo. Experiente nas coisas da fé ele interiormente conta de cabeça o dízimo naquela noite de culto, contente ao observar a casa lotada, a coleta com certeza será gorda. Olhos vermelhos, cheio de concentração invoca a maldição para os demônios que toda noite exorciza do corpo dos crentes com gestos teatrais, como um Moisés que divide as águas do Mar Vermelho com seu cajado, ou melhor, imita com maestria os trejeitos daquele ator norte-americano do filme com grandiloquência extasiada e mística.

Aquela noite a coleta, como havia previsto, era acima da média e seus colaboradores que passaram a sacola de óbulos ao fim do culto levaram a féria para os fundos do templo onde máquinas de contar cédulas confirmavam a fidelidade dos fiéis através da fria visão cartesiana de dígitos que aumentavam nas pequenas telas. Depois da contagem, pelo avançado da hora, as notas iam descansar num robusto cofre forte, de última geração adquirido pela congregação, que só o pastor detinha a combinação, para serem depositadas as sempre crescentes somas no banco na manhã do dia seguinte.

Após a conferência dos valores ele pagou e despediu os auxiliares com uma prece curta de graças pelas indulgências alcançadas, pois já estava cansado de tanta reza desperdiçada. E foi guardar os maços de dinheiro contados e acionar os alarmes da caixa-forte para não dar sorte ao azar.

Saiu da antecâmara e vislumbou o templo que imaginava vazio e recendia a cheiro de povo pobre, gente simples que todos os dias de culto iam deixar suas migalhas arduamente batalhadas para engordar a fé que tinham nesse deus que tudo prometia e tudo curava representado na voz dele: “O Escolhido”, como era chamado pelos discípulos mais exaltados.

Para sua surpresa um homem de capote preto e chapéu largo que quase tapava todo o rosto estava sentado comodamente no meio da plateia do oratório. Cabeça baixa, este sujeito de tipo incomum não fez movimento algum quando o pastor se aproximou.

─ Irmão, o culto já terminou e estou fechando o templo – Falou o pastor com alguma preocupação — os seguranças não haviam percebido a presença desse infeliz quando trancaram as portas da frente? – Esse bairro é super perigoso - pensou o guia de almas.

─ O culto terminou, eu sei, mas sempre costumo vir aqui toda a noite para acompanhar seus sermões pastor. Tenho uma verdadeira obsessão em escutá-los - impossível de resistir. Com certeza você recebeu um dom divino. Não é por nada que o chamam de “O Escolhido”. Deus tem com certeza um estranho senso de humor.

Entre envaidecido e receoso, e notando não ter conseguido ainda ver o rosto do homem misterioso, essa estranha presença em hora tão tardia, pensou em chamar o segurança da noite e acabar logo com aquela situação constrangedora. Por outro lado poderia ser um fiel endinheirado e ficaria com certeza ofendido em ser expulso do templo. Talvez seu rosto tivesse algum defeito, um acidente o tenha desfigurado e estivesse à procura de alguma graça. Achou melhor continuar a prosa apesar do cansaço.

─ Como é mesmo seu nome?

─ Me chamam de muitos nomes.

Um arrepio correu a espinha do pastor. Só falta ser algum antigo colega de cela que veio cobrar dívida de jogo ou drogas que tinha comprado e esquecido de pagar. Só podia ser um desafeto da época que ele era um pecador assumido na cana, ou quando vendia apostas do bicho nas esquinas.

─ Não pense mal de mim – disse o homem misterioso, tenho total admiração pela sua pessoa já faz tempo.

─ Não sou de levar a mal nada, nem mesmo a sua presença nesse horário impróprio, mas estou cansado e preciso ir para casa descansar. Sabe cumé, amanhã é outro dia e Deus ajuda a quem cedo madruga.

─ É verdade, talvez vendo meu rosto você consiga entender a razão da minha aparição por aqui. Vim fazer uma reivindicação.

─ Reivindicação?! – Já entendi, mas não devolvemos o dízimo depois que ele foi ofertado, é regra da nossa religião e fato amparado por lei.

─ Você não entendeu nada mesmo – disse o homem retirando lentamente o chapéu que cobria seu rosto e mostrando a face até então encoberta.

Um grito nada másculo partiu da boca do pastor que ficou completamente em estado de choque. O homem misterioso, ou seja lá o que for, era a sua cara, parecia um gêmeo, mas ele sabia que não tinha irmãos e ficou ainda mais aterrorizado ao se deparar com uma figura que era a sua imagem como que refletida num espelho, cada ruga, até aquela cicatriz que tinha da briga no presídio.

─ Vim reivindicar o meu templo oras – Falou sua cópia escarrada – Seu átimo de vida na terra enganando as pessoas já terminou, vim levar a sua alma, vou continuar sua obra de hoje em diante, para dar mais peso ao negócio e quem sabe expandir, vou candidatar-me para algum cargo político, o céu, ou melhor o inferno é o limite.

─ Mas como, se eu tenho feito tudo certinho, reunido o dízimo, lavado o dinheiro para os homê do partido e nunca transigi das minhas funções junto aos fiéis e agora Deus manda um anjo para me substituir, que absurdo !

─ Eu não sou um anjo qualquer, eu sou Legião, o próprio dono do inferno e não foi Deus que me enviou.

Ao terminar esse diálogo insólito energias ctônicas estremeceram o templo e o pastor foi aos poucos virando sombra, esfumou-se e o outro, sua sombra, foi virando ele e ambos aglutinaram-se em um só ser. A criação diabólica trancou as portas do templo como era costume seu outro eu trancar. Entrou na sua Mercedes último tipo e seguiu para casa, pois na noite seguinte o culto com certeza ia bombar.


Julio Kling




sábado, 3 de janeiro de 2015

Com o quê os Tigres Sonham?


Ele não sabia. Sentia o gosto amargo de mais uma manhã que iniciava calorenta enquanto vestia seu surrado terno para seguir para o trabalho. A única coisa que não saia da sua cabeça era a comissão devida que ainda não tinha recebido, pois o financiamento da cliente não tinha sido aprovado por enquanto e conforme o andar da carruagem ficaria sem essa grana para pagar a pensão alimentícia dos filhos e não tinha cliente algum para vender aquele apartamento da esquina que tinha se comprometido a vender para os proprietários.  Olhou para o espelho do banheiro, para aquela figura patética com a boca banguela e precisando de cuidados, imaginando que quando recebesse algum dinheiro poderia ir ao dentista para tentar um tratamento e colocar algumas próteses.  Despediu-se da companheira, que como sempre, era  tolerante com suas flutuações constantes de humor. E partiu para mais uma jornada na loja da imobiliária, mais um plantão, quando tinha que atender clientes potenciais de imóveis.
─ Onde a senhora viu o imóvel? Ah sei, tem uma placa Qual o endereço? Não sabe? Sim senhora, eu deveria saber (mas minha bola de cristal está meio estragada – pensou ) Não se preocupe,  sem problemas, assim que localizar ligo de volta. Obrigado por ter ligado!
Essa era a rotina, entre cada cem atendimentos, um ou outro cliente com potencial real de compra. O ambiente de trabalho era limpo, asséptico, uma bancada cheia de monitores com seus operadores humanos atendendo, ligando, tentando captar novos clientes, abusando do café e reclamando da vida. Só os idiotas acreditavam na meritocracia da empresa que não pagava nada, nem um centavo a mais para ter aqueles cretinos enchendo o saco das pessoas do outro lado da linha, pensava com uma ponta de sarcasmo.
No fim do turno da manhã se preparou para sair, para comer alguma coisa e foi quando seu celular tocou, era a irmã. Só conversavam quando algo acontecia de estranho na família, algum evento importante, ou quando ela o convidava para alguma festa familiar, o que sempre acontecia na casa dela. Naquele dia a notícia não era nada boa:
─ Ela está no Hospital, dessa vez o médico disse que é grave. Talvez não resista por muito tempo.
Saiu da imobiliária meio transtornado, o hospital não ficava muito longe. Não se lembrava quando tinha sido a última vez que tinha tido contato com a mãe. Achava que tinha sido no Natal. Detestava visitá-la na clinica geriátrica. Não pela pessoa dela. Tinha um profundo carinho pela mãe. Mas detestava vivenciar a velhice, o fim de vitalidade que os corpos das pessoas apresentam com o adiantado dos anos, a demência das idosas agarradas em suas bonecas ou balbuciando palavras desconexas, pessoas sem vigor sendo levadas pelas mãos das enfermeiras, o cheiro da velhice que recende a mijo seco e fraldas descartáveis, tudo aquilo que causava um efeito opressivo e levava um tempo para levantar o astral dele depois de cada visita. Por isso tinha que se esforçar para visitá-la e sentia vergonha do seu egoísmo.
Encontrou-a deitada na cama do hospital, na UTI, depois de uma longa espera.  A falta de recursos da família obrigou baixá-la em um hospital público, mas que era referência em tratamentos similares. Ela estava lúcida, falou que queria ser logo transferida para o quarto, que a cunhada, esposa do irmão teria gosto de ficar com ela, pois gostava daquele ambiente hospitalar, coisa que ele internamente duvidou.  A voz dela, apesar da tosse constante e o respirador que era obrigada a utilizar, estava clara. Ela procurava parecer tranquila, já tinha sido internada outras vezes, era uma sobrevivente com quase 80 anos de várias moléstias anteriores. O comportamento dela era estoico, nada poderia ser diferente, já que a situação se apresentava inexorável, já fazia parte de sua rotina de vida na velhice e ela tentava mostrar-se despreocupada. Ele saiu de lá preocupado. O ambiente hospitalar também era opressivo. Já percebia que aquilo iria ser um transtorno para sua vida, seus negócios, ia perder o foco dos clientes, seria difícil atingir suas metas na empresa, maior preocupação.
No segundo dia foi visitá-la e encontrou-a sedada, tinham colocado um tubo que chegava até sua traqueia para auxiliar sua respiração que tinha piorado. Vários equipamentos tinham sido adicionados e faziam ruídos estranhos conforme sua respiração ocorria e seus batimentos cardíacos e pressão sanguínea mudavam em números e gráficos incompreensíveis. Sentiu-se impotente, não sabia o que fazer. Rezou uma prece. Sua mãe nunca tinha sido pessoa de externar carinhos extremos, tinha sido carinhosa, de seu jeito particular. Lembrou-se de quando criança nas suas crises de bronquite, quando também tinha dificuldades para respirar, os afagos da mãe que preocupada tentava fazê-lo dormir. Ensaiou uns cafunés naquela mulher frágil, notou-se conversando com ela, falava palavras de consolo e ficou assim até o momento que chegou a enfermeira e pediu que saísse, pois o horário de visita havia terminado.
Na primeira semana parecia estar melhor, estava de olhos abertos, tinham tirado o tubo. Tentou conversar, mas sua voz estava fraca. Ela tentava dizer algo. O que seria? Ela o olhava com aquele olhar triste de abandono e balbuciava algumas palavras ininteligíveis. Parecia pedir algo, mas ele não conseguia entender. Antes de sair perguntou aos irmãos o que poderia ser que ela queria dizer, nenhum deles sabia. Diga-se de passagem, que ele era o filho mais relapso, seu irmão caçula sempre estava ao lado da mãe, cuidando dela, visitando-a na clínica, tinha sido o irmão que tinha conseguido interná-la naquele bom hospital. A irmã também era sempre atenciosa, quando podia levava a mãe para estar junto nas festividades da família. Ele era o escroto, um péssimo filho, que tinha medo dos velhos da clínica, e que evitava hospitais como o diabo foge da cruz. Isso, esta constatação de sua fraqueza interior revoltava-o. Tinha raiva e pena dele mesmo.  O médico deu uma péssima notícia. Teriam que fazer uma traqueotomia nela para liberar sua respiração. Não poderia mais falar.
Na segunda semana tentou se comunicar com ela, levou um caderno de desenhos, tentou fazê-la escrever. Queria saber o que ela queria pedir, o que ela balbuciava sempre quando ele estava ao seu lado, seria um capricho de quem percebeu a seriedade do próprio estado? Ao colocar a caneta na sua mão ela só escrevia rabiscos incompreensíveis. Ele escreveu para ela palavras de consolo:
VOCE QUER IR EMBORA ? ESSE FOI O MELHOR HOSPITAL QUE CONSEGUIMOS
ESTÁ SE SENTINDO MELHOR? SIM – UMA PISCADA. NÃO, DUAS PISCADAS
TEM QUE PENSAR SÓ EM COISA BOAS
APROVEITA PARA DORMIR BASTANTE E RELAXAR. NÃO ADIANTA FICAR NERVOSA
TODOS OS DIAS FALAMOS COM O DOUTOR E POR ENQUANTO ELE NÃO PODE TE DAR ALTA
AGORA VÃO DEIXAR VC. DESCANSAR ATÉ FICAR BOA. TEM QUE TER PACIÊNCIA.
VOCE QUER PERGUNTAR ALGUMA COISA?
EU TE AMO e fez um desenho de um coração mal feito. Uma garatuja.
Na terceira semana quando ia visitá-la notava o olhar, antes sempre observador, aquele olhar perscrutador de ave de rapina, uma característica que sempre tinha admirado na mãe, agora estava sem vida, embaçado, olhando o vazio. Ela ainda balbuciava as mesmas palavras. Nunca conseguiu restabelecer algum tipo de comunicação. Tentou escrever todas as letras do alfabeto e pedir que ela indicasse aquelas das palavras que não podiam ser mais ditas. O sistema de piscadas logo deixou de funcionar. Só restava ficar ao seu lado, acariciar sua cabeça branca, rezar para que Deus tivesse piedade daquele corpinho frágil que estava ligado a vários equipamentos com sons cada vez mais abomináveis e descontrolados.
Na quarta semana os problemas cotidianos pareciam ter outra dimensão. Todos na família estavam com nervos à flor da pele. O sofrimento da mãe era cada vez maior. Os médicos tinham detectado um edema pulmonar grave. Nenhum procedimento poderia salvá-la. Só podiam dar algum conforto para ela, nada mais. Ele estava estranho, já tinha ficado assim antes. As preocupações normais da sua atividade pareciam não ter mais valor algum. Estava travado, sem vontade de discutir questões de negócios e muito menos atender aqueles clientes idiotas com suas necessidades mesquinhas. Viu-se só, sentado num café, sentindo-se indefeso perante a vida. Resolveu aquele dia não ir visitar a mãe. Marcou uma consulta ao seu médico que não podia atendê-lo no dia e outro o atendeu no centro médico. Falou dos seus sintomas, de sua falta de vontade de ir para a rua trabalhar, de seu desinteresse pelos negócios e o médico prontamente receitou aquelas mágicas pílulas que tornam as pessoas felizes e produtivas, como um passe de mágica, à la Admirável Mundo Novo.
No dia seguinte, pela manhã, uma ligação urgente da irmã, por fim o descanso final da lutadora. A vida tinha abandonado aquele corpo para ele tão querido e desamparado. Seguiu rápido para o hospital. Levou alguns minutos para que as burocracias fossem cumpridas. Levaram-no até a morgue. Lá estava sua mãe deitada, um corpo vazio e sem vida. Desabou um choro incontrolado abraçado na companheira. Por fim nunca saberia o que sua mãe queria dizer nos seus últimos dias de vida. Seria um insight? Uma sabedoria de alguém que percebe o fim próximo? Ele nunca saberia.

Afinal das contas, com o quê sonham os tigres ?