segunda-feira, 16 de novembro de 2015

A Pressão da Relação






Teo e Rafaela contraíram núpcias, uma modesta cerimonia para trezentas pessoas em uma pequena capela da moda, que necessitou sofrer restauração de sua estrutura logo após o concorrido evento, consequência do grande bulício da efeméride. Ganharam muitos presentes, pois ambos vinham de família tradicional, rica e numerosa e os respectivos sogros eram pessoas bem posicionadas na sociedade e com cargos no governo, nas altas esferas da administração pública, e, portanto muitos representantes e fornecedores interessados no negócio público acharam por bem agradar os noivos com pequenos mimos. O enxoval estava completo: receberam faqueiros de prata, cristais da Boêmia, tapetes persas, objetos de cerâmica importada, tudo o que um jovem casal poderia querer. Até mesmo um apartamento mobiliado com móveis sob medida em um bairro bem localizado e da moda bem próximo de onde trabalhavam. Após a lua de mel no Caribe voltaram às suas atividades normais e procuraram assumir seus respectivos papéis como um casal normal e apaixonado que eram.

Entre todos os presentes valiosos Rafaela descobriu em seu armário uma vistosa panela de pressão importada, que ela lembrou ter sido presente de uma tia distante, que morava no exterior. Pensou utilizá-la para cozinhar naquela noite. Como boa analista de sistemas, funcionária exemplar de uma empresa de alta tecnologia, acreditou ser fácil decifrar seu funcionamento, que sabia por informes da mãe que facilitava e diminuía o tempo de cozimento dos alimentos. Queria impressionar Teo, mostrar que havia herdado alguns dos dotes culinários maternos. Imaginou um prato exótico que tirou a receita na internet e um jantar romântico à luz de velas para criar o clima. Colocou todos os ingredientes na panela, uma receita de moqueca que a mãe lhe tinha indicado. Quando tinha já se passado algumas horas que a panela estava no fogo e o cheiro do cozido se espalhava pelo apartamento Teo chegou.

─ Humm! O cheiro está bom, estou louco de fome. – avisou o rapaz cheio de paixão pelo desvelo da esposa em preparar um pequeno banquete para os dois.

─ É a receita da mamãe, mentiu, aquela que você tanto gostava amadinho, a moqueca.

─ Hum que cheiro bom! – Será que está pronta?

─ Deve estar, está há duas horas no fogo.

─ Duas horas? Não é demais? 

─ Não sei, não consegui entender o manual de instruções da panela, estavam escritas em ideogramas chineses, e não tinha versão em inglês, minha tia deve ter comprado na China mesmo, a pobrezinha.

Rafaela descobriu que antes de abrir a tampa da panela tinha que retirar toda a pressão e quando já parecia que tudo estava pronto abriu a comporta da panela que lhe bafejou um ar quente e úmido que quase acabou com sua chapinha. Dentro, uma sopa. Era impossível distinguir as muitas postas de salmão rosa de primeira que tinha colocado dentro com tanto esmero junto aos temperos. Foi uma decepção, pois aquele caldo nada parecia com o que sua mãe fazia. Tinha virado um nada.

─ Meu deus! Que porcaria é essa!

Teo ainda tentou dizer alguma coisa para Rafaela, chegou a argumentar que a sopa não parecia tão má assim, mas seus comentários só a deixavam mais irritada. Afinal, ela não tinha estudado em uma das melhores universidades do país? Como poderia ter errado uma coisa tão simples quanto cozinhar uns peixes em uma panela. E foi para seu quarto chorar no colchão de molas importado, com duas camadas, ganho no casamento, regalo do principal fornecedor da secretaria onde o pai era o responsável pelo patrimônio. E ela ficou assim inconsolável até o dia seguinte.

A bem da verdade, por causa do noivado prolongado e para que ambos pudessem formar-se e conseguir bons empregos, nenhum dos dois tinha experiência alguma das coisas práticas da vida e tinham vivido até então na casa dos pais, sob suas respectivas proteções, onde empregados prestimosos cozinhavam e arrumavam tudo e os progenitores suportavam suas despesas e caprichos sem nunca ter sido necessário que tivessem que cuidar de assuntos tão corriqueiros e sem importância como fazer a própria comida ou lavar as próprias roupas.

No dia seguinte, Teo, inconformado, resolveu assumir a responsabilidade de decifrar aqueles verdadeiros hieróglifos que constavam nas instruções da panela. Afinal sua graduação em engenharia de processos deveria ser suficiente para que tivesse proficiência até mesmo num mecanismo rudimentar como aquele, uma máquina a vapor, que lembrava os primeiros estágios da Revolução Industrial, uma simples panela de pressão. Colocou alguns legumes, água até a metade, como havia visto no Youtube e ligou o fogo. Colocou os pratos na mesa da sala, acendeu as velas e quando Rafaela chegou abriu um vinho importado que sobrou do buffet da cerimonia de casamento e serviu nas taças de cristal novinhas.

─ Ah meu amor! – disse Rafaela enternecida pela atenção do rapaz.

─ Não se preocupe querida, agora está tudo sob controle.

Os dois se olharam com ternura, tinham aquela química dos recém-casados, as brasas estavam sempre prontas para a fogueira da paixão avassaladora e assim foram dos carinhos aos beijos, dos beijos aos abraços e logo ele carregava ela para o colchão de duas camadas, de onde, ou por ação do vinho ou pela volúpia da situação esqueceram do mundo a volta, de tudo mesmo, até daquele ser analógico que soltava pequenas ondas de vapor enquanto a válvula girava diabólica pela ação ígnea do fogão. Após o intercurso, o casal abraçado em meio as suas juras de amor, Rafaela exclama:

─ Você desligou o fogo da panela né, Teo?

Teo foi tomado de um calafrio, na verdade a depressão pós-coito transformou-se em pânico extremo e ele, recuperado do torpor, deu um salto da cama em direção à cozinha para tentar salvar o jantar, foi quando houve a explosão. Os bombeiros depois afirmaram que era um problema comum, já tinham atendido casos semelhantes sem conta. Rafaela chorava sem controle, a louça nova, a prataria, os cristais da Boêmia, os móveis da cozinha, o fogão embutido, a geladeira importada, tudo destruído pela maldita panela de pressão chinesa. Teo nada tinha sofrido, mas instintivamente sabia que seu casamento nunca mais seria o mesmo, tinham atravessado uma linha invisível e tênue onde a admiração incondicional da esposa tinha terminado definitivamente. O olhar fixo de ódio dela para as mobílias destruídas e o apartamento enegrecido, as cortinas queimadas, o mármore da pia rachado era o sinal de que tudo tinha mudado na vida deles para sempre.


terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Pastor no Espelho




O Pastor conduz o rebanho no culto, fiéis acotovelam-se para prestar atenção nos fenômenos, milagres e demonstrações de cura que ocorrem em profusão e ululam sem pudor para cada palavra enlevada que ele profere aos gritos segurando alto o livro sagrado. Aleluias reverberam pelo templo. Experiente nas coisas da fé ele interiormente conta de cabeça o dízimo naquela noite de culto, contente ao observar a casa lotada, a coleta com certeza será gorda. Olhos vermelhos, cheio de concentração invoca a maldição para os demônios que toda noite exorciza do corpo dos crentes com gestos teatrais, como um Moisés que divide as águas do Mar Vermelho com seu cajado, ou melhor, imita com maestria os trejeitos daquele ator norte-americano do filme com grandiloquência extasiada e mística.

Aquela noite a coleta, como havia previsto, era acima da média e seus colaboradores que passaram a sacola de óbulos ao fim do culto levaram a féria para os fundos do templo onde máquinas de contar cédulas confirmavam a fidelidade dos fiéis através da fria visão cartesiana de dígitos que aumentavam nas pequenas telas. Depois da contagem, pelo avançado da hora, as notas iam descansar num robusto cofre forte, de última geração adquirido pela congregação, que só o pastor detinha a combinação, para serem depositadas as sempre crescentes somas no banco na manhã do dia seguinte.

Após a conferência dos valores ele pagou e despediu os auxiliares com uma prece curta de graças pelas indulgências alcançadas, pois já estava cansado de tanta reza desperdiçada. E foi guardar os maços de dinheiro contados e acionar os alarmes da caixa-forte para não dar sorte ao azar.

Saiu da antecâmara e vislumbou o templo que imaginava vazio e recendia a cheiro de povo pobre, gente simples que todos os dias de culto iam deixar suas migalhas arduamente batalhadas para engordar a fé que tinham nesse deus que tudo prometia e tudo curava representado na voz dele: “O Escolhido”, como era chamado pelos discípulos mais exaltados.

Para sua surpresa um homem de capote preto e chapéu largo que quase tapava todo o rosto estava sentado comodamente no meio da plateia do oratório. Cabeça baixa, este sujeito de tipo incomum não fez movimento algum quando o pastor se aproximou.

─ Irmão, o culto já terminou e estou fechando o templo – Falou o pastor com alguma preocupação — os seguranças não haviam percebido a presença desse infeliz quando trancaram as portas da frente? – Esse bairro é super perigoso - pensou o guia de almas.

─ O culto terminou, eu sei, mas sempre costumo vir aqui toda a noite para acompanhar seus sermões pastor. Tenho uma verdadeira obsessão em escutá-los - impossível de resistir. Com certeza você recebeu um dom divino. Não é por nada que o chamam de “O Escolhido”. Deus tem com certeza um estranho senso de humor.

Entre envaidecido e receoso, e notando não ter conseguido ainda ver o rosto do homem misterioso, essa estranha presença em hora tão tardia, pensou em chamar o segurança da noite e acabar logo com aquela situação constrangedora. Por outro lado poderia ser um fiel endinheirado e ficaria com certeza ofendido em ser expulso do templo. Talvez seu rosto tivesse algum defeito, um acidente o tenha desfigurado e estivesse à procura de alguma graça. Achou melhor continuar a prosa apesar do cansaço.

─ Como é mesmo seu nome?

─ Me chamam de muitos nomes.

Um arrepio correu a espinha do pastor. Só falta ser algum antigo colega de cela que veio cobrar dívida de jogo ou drogas que tinha comprado e esquecido de pagar. Só podia ser um desafeto da época que ele era um pecador assumido na cana, ou quando vendia apostas do bicho nas esquinas.

─ Não pense mal de mim – disse o homem misterioso, tenho total admiração pela sua pessoa já faz tempo.

─ Não sou de levar a mal nada, nem mesmo a sua presença nesse horário impróprio, mas estou cansado e preciso ir para casa descansar. Sabe cumé, amanhã é outro dia e Deus ajuda a quem cedo madruga.

─ É verdade, talvez vendo meu rosto você consiga entender a razão da minha aparição por aqui. Vim fazer uma reivindicação.

─ Reivindicação?! – Já entendi, mas não devolvemos o dízimo depois que ele foi ofertado, é regra da nossa religião e fato amparado por lei.

─ Você não entendeu nada mesmo – disse o homem retirando lentamente o chapéu que cobria seu rosto e mostrando a face até então encoberta.

Um grito nada másculo partiu da boca do pastor que ficou completamente em estado de choque. O homem misterioso, ou seja lá o que for, era a sua cara, parecia um gêmeo, mas ele sabia que não tinha irmãos e ficou ainda mais aterrorizado ao se deparar com uma figura que era a sua imagem como que refletida num espelho, cada ruga, até aquela cicatriz que tinha da briga no presídio.

─ Vim reivindicar o meu templo oras – Falou sua cópia escarrada – Seu átimo de vida na terra enganando as pessoas já terminou, vim levar a sua alma, vou continuar sua obra de hoje em diante, para dar mais peso ao negócio e quem sabe expandir, vou candidatar-me para algum cargo político, o céu, ou melhor o inferno é o limite.

─ Mas como, se eu tenho feito tudo certinho, reunido o dízimo, lavado o dinheiro para os homê do partido e nunca transigi das minhas funções junto aos fiéis e agora Deus manda um anjo para me substituir, que absurdo !

─ Eu não sou um anjo qualquer, eu sou Legião, o próprio dono do inferno e não foi Deus que me enviou.

Ao terminar esse diálogo insólito energias ctônicas estremeceram o templo e o pastor foi aos poucos virando sombra, esfumou-se e o outro, sua sombra, foi virando ele e ambos aglutinaram-se em um só ser. A criação diabólica trancou as portas do templo como era costume seu outro eu trancar. Entrou na sua Mercedes último tipo e seguiu para casa, pois na noite seguinte o culto com certeza ia bombar.


Julio Kling




sábado, 3 de janeiro de 2015

Com o quê os Tigres Sonham?


Ele não sabia. Sentia o gosto amargo de mais uma manhã que iniciava calorenta enquanto vestia seu surrado terno para seguir para o trabalho. A única coisa que não saia da sua cabeça era a comissão devida que ainda não tinha recebido, pois o financiamento da cliente não tinha sido aprovado por enquanto e conforme o andar da carruagem ficaria sem essa grana para pagar a pensão alimentícia dos filhos e não tinha cliente algum para vender aquele apartamento da esquina que tinha se comprometido a vender para os proprietários.  Olhou para o espelho do banheiro, para aquela figura patética com a boca banguela e precisando de cuidados, imaginando que quando recebesse algum dinheiro poderia ir ao dentista para tentar um tratamento e colocar algumas próteses.  Despediu-se da companheira, que como sempre, era  tolerante com suas flutuações constantes de humor. E partiu para mais uma jornada na loja da imobiliária, mais um plantão, quando tinha que atender clientes potenciais de imóveis.
─ Onde a senhora viu o imóvel? Ah sei, tem uma placa Qual o endereço? Não sabe? Sim senhora, eu deveria saber (mas minha bola de cristal está meio estragada – pensou ) Não se preocupe,  sem problemas, assim que localizar ligo de volta. Obrigado por ter ligado!
Essa era a rotina, entre cada cem atendimentos, um ou outro cliente com potencial real de compra. O ambiente de trabalho era limpo, asséptico, uma bancada cheia de monitores com seus operadores humanos atendendo, ligando, tentando captar novos clientes, abusando do café e reclamando da vida. Só os idiotas acreditavam na meritocracia da empresa que não pagava nada, nem um centavo a mais para ter aqueles cretinos enchendo o saco das pessoas do outro lado da linha, pensava com uma ponta de sarcasmo.
No fim do turno da manhã se preparou para sair, para comer alguma coisa e foi quando seu celular tocou, era a irmã. Só conversavam quando algo acontecia de estranho na família, algum evento importante, ou quando ela o convidava para alguma festa familiar, o que sempre acontecia na casa dela. Naquele dia a notícia não era nada boa:
─ Ela está no Hospital, dessa vez o médico disse que é grave. Talvez não resista por muito tempo.
Saiu da imobiliária meio transtornado, o hospital não ficava muito longe. Não se lembrava quando tinha sido a última vez que tinha tido contato com a mãe. Achava que tinha sido no Natal. Detestava visitá-la na clinica geriátrica. Não pela pessoa dela. Tinha um profundo carinho pela mãe. Mas detestava vivenciar a velhice, o fim de vitalidade que os corpos das pessoas apresentam com o adiantado dos anos, a demência das idosas agarradas em suas bonecas ou balbuciando palavras desconexas, pessoas sem vigor sendo levadas pelas mãos das enfermeiras, o cheiro da velhice que recende a mijo seco e fraldas descartáveis, tudo aquilo que causava um efeito opressivo e levava um tempo para levantar o astral dele depois de cada visita. Por isso tinha que se esforçar para visitá-la e sentia vergonha do seu egoísmo.
Encontrou-a deitada na cama do hospital, na UTI, depois de uma longa espera.  A falta de recursos da família obrigou baixá-la em um hospital público, mas que era referência em tratamentos similares. Ela estava lúcida, falou que queria ser logo transferida para o quarto, que a cunhada, esposa do irmão teria gosto de ficar com ela, pois gostava daquele ambiente hospitalar, coisa que ele internamente duvidou.  A voz dela, apesar da tosse constante e o respirador que era obrigada a utilizar, estava clara. Ela procurava parecer tranquila, já tinha sido internada outras vezes, era uma sobrevivente com quase 80 anos de várias moléstias anteriores. O comportamento dela era estoico, nada poderia ser diferente, já que a situação se apresentava inexorável, já fazia parte de sua rotina de vida na velhice e ela tentava mostrar-se despreocupada. Ele saiu de lá preocupado. O ambiente hospitalar também era opressivo. Já percebia que aquilo iria ser um transtorno para sua vida, seus negócios, ia perder o foco dos clientes, seria difícil atingir suas metas na empresa, maior preocupação.
No segundo dia foi visitá-la e encontrou-a sedada, tinham colocado um tubo que chegava até sua traqueia para auxiliar sua respiração que tinha piorado. Vários equipamentos tinham sido adicionados e faziam ruídos estranhos conforme sua respiração ocorria e seus batimentos cardíacos e pressão sanguínea mudavam em números e gráficos incompreensíveis. Sentiu-se impotente, não sabia o que fazer. Rezou uma prece. Sua mãe nunca tinha sido pessoa de externar carinhos extremos, tinha sido carinhosa, de seu jeito particular. Lembrou-se de quando criança nas suas crises de bronquite, quando também tinha dificuldades para respirar, os afagos da mãe que preocupada tentava fazê-lo dormir. Ensaiou uns cafunés naquela mulher frágil, notou-se conversando com ela, falava palavras de consolo e ficou assim até o momento que chegou a enfermeira e pediu que saísse, pois o horário de visita havia terminado.
Na primeira semana parecia estar melhor, estava de olhos abertos, tinham tirado o tubo. Tentou conversar, mas sua voz estava fraca. Ela tentava dizer algo. O que seria? Ela o olhava com aquele olhar triste de abandono e balbuciava algumas palavras ininteligíveis. Parecia pedir algo, mas ele não conseguia entender. Antes de sair perguntou aos irmãos o que poderia ser que ela queria dizer, nenhum deles sabia. Diga-se de passagem, que ele era o filho mais relapso, seu irmão caçula sempre estava ao lado da mãe, cuidando dela, visitando-a na clínica, tinha sido o irmão que tinha conseguido interná-la naquele bom hospital. A irmã também era sempre atenciosa, quando podia levava a mãe para estar junto nas festividades da família. Ele era o escroto, um péssimo filho, que tinha medo dos velhos da clínica, e que evitava hospitais como o diabo foge da cruz. Isso, esta constatação de sua fraqueza interior revoltava-o. Tinha raiva e pena dele mesmo.  O médico deu uma péssima notícia. Teriam que fazer uma traqueotomia nela para liberar sua respiração. Não poderia mais falar.
Na segunda semana tentou se comunicar com ela, levou um caderno de desenhos, tentou fazê-la escrever. Queria saber o que ela queria pedir, o que ela balbuciava sempre quando ele estava ao seu lado, seria um capricho de quem percebeu a seriedade do próprio estado? Ao colocar a caneta na sua mão ela só escrevia rabiscos incompreensíveis. Ele escreveu para ela palavras de consolo:
VOCE QUER IR EMBORA ? ESSE FOI O MELHOR HOSPITAL QUE CONSEGUIMOS
ESTÁ SE SENTINDO MELHOR? SIM – UMA PISCADA. NÃO, DUAS PISCADAS
TEM QUE PENSAR SÓ EM COISA BOAS
APROVEITA PARA DORMIR BASTANTE E RELAXAR. NÃO ADIANTA FICAR NERVOSA
TODOS OS DIAS FALAMOS COM O DOUTOR E POR ENQUANTO ELE NÃO PODE TE DAR ALTA
AGORA VÃO DEIXAR VC. DESCANSAR ATÉ FICAR BOA. TEM QUE TER PACIÊNCIA.
VOCE QUER PERGUNTAR ALGUMA COISA?
EU TE AMO e fez um desenho de um coração mal feito. Uma garatuja.
Na terceira semana quando ia visitá-la notava o olhar, antes sempre observador, aquele olhar perscrutador de ave de rapina, uma característica que sempre tinha admirado na mãe, agora estava sem vida, embaçado, olhando o vazio. Ela ainda balbuciava as mesmas palavras. Nunca conseguiu restabelecer algum tipo de comunicação. Tentou escrever todas as letras do alfabeto e pedir que ela indicasse aquelas das palavras que não podiam ser mais ditas. O sistema de piscadas logo deixou de funcionar. Só restava ficar ao seu lado, acariciar sua cabeça branca, rezar para que Deus tivesse piedade daquele corpinho frágil que estava ligado a vários equipamentos com sons cada vez mais abomináveis e descontrolados.
Na quarta semana os problemas cotidianos pareciam ter outra dimensão. Todos na família estavam com nervos à flor da pele. O sofrimento da mãe era cada vez maior. Os médicos tinham detectado um edema pulmonar grave. Nenhum procedimento poderia salvá-la. Só podiam dar algum conforto para ela, nada mais. Ele estava estranho, já tinha ficado assim antes. As preocupações normais da sua atividade pareciam não ter mais valor algum. Estava travado, sem vontade de discutir questões de negócios e muito menos atender aqueles clientes idiotas com suas necessidades mesquinhas. Viu-se só, sentado num café, sentindo-se indefeso perante a vida. Resolveu aquele dia não ir visitar a mãe. Marcou uma consulta ao seu médico que não podia atendê-lo no dia e outro o atendeu no centro médico. Falou dos seus sintomas, de sua falta de vontade de ir para a rua trabalhar, de seu desinteresse pelos negócios e o médico prontamente receitou aquelas mágicas pílulas que tornam as pessoas felizes e produtivas, como um passe de mágica, à la Admirável Mundo Novo.
No dia seguinte, pela manhã, uma ligação urgente da irmã, por fim o descanso final da lutadora. A vida tinha abandonado aquele corpo para ele tão querido e desamparado. Seguiu rápido para o hospital. Levou alguns minutos para que as burocracias fossem cumpridas. Levaram-no até a morgue. Lá estava sua mãe deitada, um corpo vazio e sem vida. Desabou um choro incontrolado abraçado na companheira. Por fim nunca saberia o que sua mãe queria dizer nos seus últimos dias de vida. Seria um insight? Uma sabedoria de alguém que percebe o fim próximo? Ele nunca saberia.

Afinal das contas, com o quê sonham os tigres ? 

domingo, 3 de novembro de 2013

Exéquias ao Chefe







Na capela o respeitoso silêncio é quebrado:

─ Conheci-o aos 18 anos, era um jovem rebelde, um anarquista.

─ Não diga...

─ Aos vinte e pouco era comunista e ateu, andava com "O Capital" para cima e para baixo


─ Que absurdo...

─ Aos trinta e poucos virou neoliberal e empresário - Ficou milionário.

─ Ainda bem!

─ Aos 60 anos era um ultraconservador - Ferrenho defensor da tradição, família e propriedade.

─ Deus Abençoado!

─ Olhe só agora a cara do desgraçado, não vai poder levar um dólar sequer para a cova.

─ Pois é...

sábado, 2 de novembro de 2013

Faltando Flores Lúcidas...







A sala era escura, uma pequena lâmpada iluminava o espaço ocupado pelo prisioneiro que olhava o vazio em absoluto silêncio. Seus captores tinham usado todos os métodos conhecidos para tentar fazer que ele desse com a língua nos dentes e já estavam cansados de tanto torturá-lo.



─ Vai sargento, gira a manivela, vc. tá dando mole prá esse vagabundo! – gritava o oficial para o subalterno que suava seu sujo uniforme girando velozmente o dínamo.


Só sons ocos, gritos guturais, saiam da boca do prisioneiro a cada corrente de elétrons que atravessava seu corpo. Mas da sua boca não saia palavra alguma. Eram gritos de um animal ferido, sem expressão, a não ser a dor que ecoava pela sala fétida, que cheirava a urina velha e fezes dos torturados que perdiam o controle do esfíncter.

─ Fala animal, vamos te matar se tu não der o serviço! – dizia o oficial preocupado. O curso que tinha feito no Panamá com a CIA de anti-insurgência dessa vez não estava servindo para nada. Esse era cascudo. Tinha medo de passar da medida e acabar levando a óbito o comuna. Seus superiores não iam gostar nada disso, pois os maiorais queriam saber dos comparsas do rapaz, o nome dos integrantes da célula antes de jogá-lo no mar junto com outros lideres comunistas.

O oficial saiu da sala, foi tomar um café ruim que tinha na carceragem para ver se afastava o cansaço. Já era hora de estar em casa descansando com a patroa e não nesse buraco de ratos. O que não se fazia para ganhar uma promoção hoje em dia. Não queria dizer que ele no fundo não gostasse de tirar informações desses vermes. Quando era uma comuna jeitosa então era a maior diversão. A equipe se divertia obrigando elas fazerem de tudo e prometendo que se fizessem não iam mais judiar delas. Mas sempre judiavam. Esse pensamento de alguma forma o acalmou. Era muito raro encontrar um deles assim tão resistente. Diacho, que merda...

A mente dele não estava mais ali, estava passeando por alguma praça do inverno europeu, Luísa ao seu lado rindo de suas piadas sem graça, ambos sentados, no muro da fonte congelada. Depois vinha um flash deles deitados naquele pequeno quarto que tinha sido destinado para eles, seus corpos se tocando, o prazer sem fim que preenchia todo o espaço e não dava lugar para a dor. Tinha treinado, foram anos de treinamento entre homens sábios com suas roupas monásticas, manter o vazio, Sunyata, o não-ser, respiração lenta, cadenciada, as atividades corporais em baixo metabolismo, uma muralha de nada protegia sua consciência do sofrimento, e impedia a sensação física de dor toldar seu pensamento. Só as memórias vinham como um consolo. Ele não estava mais lá, nem Luísa. Ela fora uma das primeiras a cair quando eles voltaram para libertar o Brasil da ditadura. Um companheiro tinha sido pego pela repressão e depois das sessões nos porões de algum quartel tinha entregado seus nomes e codinomes e sua localização para os agentes inimigos. A morte dela foi rápida, quase indolor, quando cercaram o apartamento onde nos escondíamos, ela pegou a 9 mm e deu um tiro na própria fronte. Era o que diziam os estarrecidos jornais situacionistas. Diziam que tinha se matado por fanatismo. Coisa de comuna fanático, alardeavam. Na verdade ela era uma mulher sensível e não podia suportar qualquer sensação de dor e temia entregar a operação caso fosse pega. Ele não estava lá naquela hora, não pôde vê-la, nem compartilhar seus últimos momentos.

─ Corre aqui Capitão ! – gritou o sargento.

─ O que houve seu infeliz, que merda você aprontou !

─ Acho que foi demais, o homem tá morrendo.

─ Desamarra o desgraçado! - Eu não dei ordem dele morrer ainda – falou o oficial, já imaginando a bronca que ia levar do coronel.

─ Deixa ver... deixa ver...

O oficial tentou uma massagem cardíaca, mas o coração do prisioneiro estava quase inaudível, um sopro, um fio que separava a vida da morte. Aproximou-se do rapaz, o corpo nu, sangrento, todo sujo de excrementos e percebeu que ele queria dizer alguma coisa, aproximou o ouvido da boca do moribundo e pôde perceber somente três palavras que ficariam na sua cabeça para o resto da sua vida:

─ Faltando flores lúcidas... - Então, para desespero do militar, o torturado expirou.



sábado, 3 de novembro de 2012

Jacaré Marcou...




Já tinha se passado meia hora depois daquele susto. No mocó da “Branca”, um barraco meio desarranjado lá pelos lados da Azenha da segunda metade do século passado, os “ratos” tinham feito uma “reviradeira” no pobre mobiliário atrás das “parangas” e não tinham encontrado nada. Depois das bordoadas de praxe, aborrecidos por terem perdido o “flagra”, se foram no camburão deixando a turma meio dolorida e chateada pelo ocorrido. Naquela noite fria estava reunida a fina flor da zona, os malucos da rua, os “defensores dos frascos e comprimidos”, a turma “do que vier vem bem”. Encabeçando o bando “Cabelo”, o ”vapor” do bairro, desconfiado e irritadiço, como todo bom homem de negócios, seu mano “Cacau”, “Feio”, cujo apelido dispensa comentários, “João Boca”, negro alto sem os centroavantes e outros jogadores faltantes na boca, “Chinês”, “Apache”, com sua tirinha de couro na cabeça, sempre professoral, e “Macaco”, ou como gostava de ser chamado “Monkey”. Todos bons amigos, tinham crescido juntos, eram comparsas de pequenos golpes, e quando a mesa era farta eram pródigos em favores entre eles e “presas” de drogas de todo o tipo. Quando vinham as “vacas magras” entretanto se tornavam mesquinhos a ponto de afanarem as roupas do varal do amigo mais chegado para com sua venda poder adquirir os “produtos” que necessitavam para manter o bom humor, a moral elevada e a prodigalidade. Esse comportamento instável e pouco leal sempre gerava pequenas escaramuças do tipo uma tijolada ali, uma facada aqui, rixas que eles sempre matavam no peito sem botar a “justa” no meio. Quando a poeira baixava esqueciam as desavenças passadas e voltavam à boa, ou melhor voltavam às “boas”. Naquela noite após a interrupção da noitada pelos “home” foi “Cabelo” que, irritado, quebrou o silêncio: 


- Onde é que tá o “galo”, a “paranga”, quem foi que mocozou? – Falou para todos com cara de poucos amigos. 

- Hum!? – respondeu o “Joâo Boca” – com os olhos arregalados pelo susto ainda recente. 

- Deve estar no mocó oras – falou “Cacau” com a língua arrastada, naquele seu jeito de “panca” de sempre – Aonde mais? 

-Cala a boca animal, cê nem pára direito de pé. Aqui não tá não! – contestou “Cabelo”. 

- Tava com o “João Boca” - disse “Feio”- Era ele que tava “apertando” quando deram a batida. 

-Humm, humm! – balançou negativamente a cabeça o “Nego Boca”. 

- Tava com o “Cacau” – Disse “Apache” para botar “panos quentes” – pois sabia que com o irmão o “Cabelo” ia pensar duas vezes antes de dar uma garrafada. 

- Vou nessa – disse “Monkey”- A boca ficou “sujeira”. 

- Fiquei “de cara” com vocês – lançou “Cacau” injuriado, olhando para todos. 

- Ora velho, pelo menos os “home” não acharam o “mocó” – retorquiu “Apache” sempre na moral – Senão agora nóis tava tudo na “delega”. 

Nisso foram saindo um por um do barraco meio desconfiados uns com os outros e sob o olhar irado de “Cabelo” que não prometia coisa boa. “Monkey” e “João Boca” saíram juntos. Após dobrarem a esquina o “Boca” tirou a “paranga” que estava escondida entre os vazios dos dentes, nas bochechas, revelando o segredo da sua mudez repentina. “Monkey” olhou maravilhado para o tesouro recuperado e proferiu uma sentença lapidar: - Jacaré marcou, virou bolsa de madame – E foram alegremente dividir o butim

domingo, 28 de outubro de 2012

O CANIBAL de MIAMI








Nada é por acaso. No Universo cada partícula, cada pequena porção de poeira cósmica tem sua posição exata e sua razão particular de existir no espaço infinito. Cada evento possui seu ordenamento pré-definido onde o livre arbítrio tem função limitada no conjunto dos acontecimentos que se sucedem e determinam as trajetórias de cada existência, dos corpos celestes aos homens. Sistemas solares e galáxias se devoram e novos corpos de matéria são criados. Sempre acreditei nisso como um preceito sagrado, uma fé interior, para atingir todos os meus objetivos na vida. Afinal de contas, somos ou não nada mais que poeira de estrelas? 


Pensando assim sempre sonhei que um dia moraria nos Estados Unidos, país de primeiro mundo, onde seus cidadãos recebem os melhores serviços e compram produtos de primeira qualidade, os melhores do mundo. Estava cansado da violência urbana no Brasil. Quando ia à escola ou saia à noite com os amigos sempre temia ser assaltado e já tinha perdido pelo menos dois pares de tênis novos de marca e uma jaqueta importada nas mãos de jovens ladrões em pequenos assaltos sofridos ao voltar da escola. Eu, um nerd, meio inseguro, franzino, tímido e estudioso era como um imã para menores assaltantes de rua. Quando meu pai foi transferido para Miami pela empresa multinacional que trabalhava fiquei como em êxtase, pois acreditei que as forças inefáveis que regem o Universo tinham finalmente olhado para nossa família. Meu pai arranjou um apartamento pequeno, mas confortável para nós em Downtown, que é como chamam o centro da cidade, no condado de Miami-Dade, e quando tinha uma folga íamos pela Causeway até Miami Beach pegar uma praia no fim de semana ou passear em algum Mall para fazer compras. Durante a semana eu estudava numa public school que nada se assemelhava com as escolas públicas do meu país natal, com seus professores bem remunerados e sua ótima estrutura de alto nível.De tarde eu costumava pegar a bike e atravessava a ponte que liga o centro em direção à Miami Beach no trecho reservado a pedestres e ciclistas que seguia paralelo à autoestrada e ia pedalando até a praia para ler, estudar e tomar um banho de mar ou ia até a Library na Lincon Road em busca de algum novo livro. 

Naquele sábado fatídico, que iria mudar para sempre a minha vida, peguei minha bike e pedalei em direção à Miami Beach. Atravessei o acesso da ponte seguindo pela ciclovia como de costume. A área mais próxima do centro, a região sob a ponte costuma servir de abrigo para os sem-tetos e viciados em drogas. Meu paraíso na terra não era tão perfeito como imaginava. Estava distraído com o movimento quando algo estranho perto da alça de acesso sob a ponte chamou minha atenção. Algo incomum, um homem nu estava debruçado sobre outro ser humano também nu que se contorcia no chão. 

- Hey man what’s happen? – gritei, ainda tentando entender o que acontecia, na intenção de prestar alguma ajuda se necessário, e então me deparei com uma cena que nunca mais iria esquecer. Foi quando pude presenciar uma das coisas mais horrendas que eu já vi na minha vida. O cara olhou na minha direção como um zumbi, com os olhos sem expressão, e vi que algo muito estranho estava acontecendo. Percebi que mastigava um pedaço de carne e escorria sangue de sua boca e bochechas. Ele então rosnou para mim de forma animalesca e continuou agachado sobre o corpo da vitima sem as bochechas, nariz, olhos e testa que tinham sido arrancados. Foi quando caiu a ficha. O cara estava comendo o outro. Gritei para que parasse, mas ele não deu bola e continuou seu ritual macabro sem se preocupar com o tráfico intenso de veículos e pessoas no lugar. Fiquei como que hipnotizado olhando a cena e pude observar que o agressor já tinha rasgado o rosto do outro com os dentes, era um homem nu que comia outro também nu em aparente estado de inconsciência, e o que estava por cima arrancava os olhos e a carne do rosto do moribundo a mordidas. De um salto, sem razão aparente e com um olhar de faminto, o homem se levantou e veio correndo em minha direção. Devo ter levado alguns segundos para perceber sua intenção de atacar-me e por instinto reagi, pulei para trás para tentar subir na bike e fugir, mas tropecei e perdi o equilíbrio indo ao chão. Meio tonto pela queda senti a ágil aproximação do monstro e uma dor lancinante percorreu minha perna que estava exposta, pois naquele dia calorento vestia bermudas. Foi quando ouvi tiros e desmaiei de pavor. 

Acordei meio zonzo no hospital, e logo percebi a presença de meus amorosos pais super preocupados. O médico de plantão olhava minha ficha e tentava acalmar os dois, pois o pior, explicava, já havia passado. Iriam fazer um implante na barriga da minha perna que tinha sido parcialmente devorada pelo agressor e ficaria somente uma pequena cicatriz. Ele demonstrou mais preocupação com o possível trauma psicológico causado pela agressão e sugeriu uma terapia de acompanhamento para verificar se não tinha adquirido sintomas de stress pós-traumático, comum nesses casos. Meus pais desde o primeiro dia evitaram o assédio da imprensa e proibiram o hospital de dar acesso aos jornalistas. 

Quando passou o efeito dos analgésicos pude ver TV e acompanhei pelas emissoras os desdobramentos do que tinha acontecido um dia antes, era uma multidão de policiais e especialistas que nas entrevistas tentavam explicar o que havia acontecido e depoimentos de testemunhas e familiares que relembravam os acontecimentos com horror e já tinham denominado o agressor de “Zumbi de Miami”. 

- Quando vemos esse tipo de conduta de pessoas nuas e que se tornam violentas, é um indicativo de um delírio causado por overdose - disse Armando Aguilar, um agente da polícia de Miami, ao cara da TV - O criminoso poderia estar sob o efeito de uma overdose de um novo componente do LSD, ou sofrendo de psicose provocada por abuso de cocaína, que pode levar a um comportamento homicida – disse o policia. 

- Quando chegamos ao local ordenamos que o agressor se afastasse do garoto, mas ele continuou o ataque e tivemos que matá-lo para proteger a vítima – disse um dos policiais que atendeu a ocorrência. 

- Nos últimos anos temos visto um grande aumento no consumo de substâncias ilegais consideradas como gatilhos de ataques brutais como a cocaína, o ecstasy e uma nova droga sintética vendida ilegalmente entre os viciados conhecida como miau-miau, uma mistura de substâncias alucinógenas com uma cadeia impronunciável de componentes químicos. Dois anos atrás, quando começaram a vender essa droga nas ruas foram relatados 300 casos. Este ano já são cerca de 6 mil, explicou o médico Paul Adams, do Jackson Memorial Hospital, em Miami ao cara da TV - Seu uso provoca paranoia extrema, agitação, alucinações e força incomum. - É muito difícil controlar alguém que tenha tomado estas substâncias. Eles ficam tão agitados e paranoicos, e apresentam um comportamento tão psicótico, que podem ser necessárias de seis a sete pessoas para controlar um homem de vinte e poucos anos e 70 quilos que tenha consumido essas substâncias porque alteram o limiar da dor. Eles são capazes de atacar as suas próprias famílias. E também golpear a cabeça contra a parede e cometer automutilação. - Quem consome essas drogas tem a sensação de estar queimando por dentro, então se despe, ou tenta se refrescar pulando na água. A taxa metabólica vai a 30% acima do normal e geralmente o usuário apresenta sintomas de desidratação - disse o médico 

- Ele foi drogado sem seu conhecimento ou foi vítima de um feitiço vodu, declarou chorosa sua atônita namorada - Eu não sei como explicar tudo isso de outra forma. Afirmou ao repórter que não acreditava em vodu até o incidente envolvendo seu namorado, de origem haitiana, que havia sido identificado pela policia como o agressor. Segundo ela, ele fumava maconha regularmente, mas tentava parar e nunca tinha experimentado drogas mais fortes. A jovem também o descreveu como um homem religioso e que nunca foi violento. Contudo, de acordo com relatórios da polícia de Miami em 2004 ele chegou a ameaçar a mãe e quebrar seus móveis durante uma discussão. A mãe, entrevistada pela emissora de televisão local, desconsolada assegurava: - Meu filho não era um delinquente. Todo mundo diz que era um zumbi, mas eu sei que não é verdade. - É o meu filho, declarou a mulher. 

Imediatamente o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos fez questão de alertar oficialmente que zumbis não existem. - O CDC não conhecia qualquer vírus ou condição que reanimaria os mortos (ou que apresentasse sintomas parecidos com de zumbis) - adiantou o porta-voz da instituição. A declaração foi feita devido à fama do caso do “Zumbi de Miami” e de alguns outros eventos estranhos que vinham ocorrendo em todo o país. No Canadá, a polícia procurava por um ator pornô suspeito de ter matado um jovem com um picador de gelo, esquartejá-lo, comer partes da carne e enviar pedaços do corpo por correio a Ottawa. 

No Estado americano de Maryland, um estudante de engenharia elétrica da Universidade de Morgan confessou que comeu o coração e parte do cérebro de um colega. Ele tornou-se suspeito do crime quando a polícia encontrou as mãos e parte da cabeça da vítima na casa dele. O resto do corpo da vítima, um homem nascido em Gana, foi encontrado em um recipiente de lixo próximo de uma igreja da comunidade. 

Com o passar do tempo a notícia do ataque, como ocorre normalmente nesses casos, havia caído no esquecimento do grande público. Após algumas semanas internado para fazer a cirurgia plástica de reconstituição resolvi fazer terapia conforme sugeriu meu médico e graças ao tratamento psicológico fiz uma mudança radical em minha vida. Comecei a “puxar ferros” em uma academia para aumentar minha autoestima e por sugestão da terapeuta fiz uma pesquisa profunda nesse assunto tabu que é o canibalismo, pois ela acreditava que só me confrontando com o problema eu poderia sublimar o trauma sofrido e encarar a vida de outra forma, resolvendo interiormente a agressão. Comecei a coletar notícias da imprensa na internet sobre eventos semelhantes e descobri que eram mais comuns do que imaginava e ocorriam com razoável frequência. Fiz um banco de dados do assunto e busquei algumas referências históricas. Logo percebi que historiadores e antropólogos relataram costumes semelhantes em todas as civilizações do planeta, inclusive a nossa, o que demonstra que o tabu contra a antropofagia surgiu recentemente na humanidade, nos dois últimos milhares de anos e o canibalismo é um instinto natural dos humanos, razão do tabu, e é responsável pelo surgimento de várias religiões. Até mesmo a religião católica contempla o devoramento da divindade no momento da consagração do pão e vinho onde comemos e bebemos a carne e o sangue do Cristo. Comecei então a estudar fisiologia para descobrir as causas da mudança na personalidade de uma pessoa sob o efeito de agentes químicos, naturais ou sintéticos, e descobri que o hipotálamo é a mais primitiva porção do encéfalo dos mamíferos que age eletroquimicamente sobre os neurônios do sistema límbico envolvido principalmente no controle das emoções. Também controla a temperatura corporal, a fome, sede, e os ciclos circadianos, quer dizer, o período de aproximadamente um dia (24 horas) sobre o qual se baseia todo o ciclo biológico de qualquer ser vivo influenciado pela luz solar. O ritmo circadiano regula todos os ritmos materiais bem como muitos dos ritmos psicológicos do corpo humano, com influência sobre, por exemplo, a digestão ou o estado de vigília, passando pelo crescimento e pela renovação das células. Essa pequena porção cerebral, o hipotálamo controla a temperatura corporal, o apetite e o nível de água no corpo, além de ser o principal centro da expressão emocional e do comportamento sexual. É nessa região do cérebro que normalmente atuam as drogas sintéticas ou aquelas produzidas naturalmente pelo organismo humano após, por exemplo, um trauma de grandes proporções, como uma psicose de guerra por exemplo. Impressionada pelo meu estudo a terapeuta teve certeza que podia me dar alta em definitivo. Eu me sentia bem tanto física quanto psicologicamente, minha insegurança juvenil tinha acabado e meu corpo tornou-se forte e musculoso com a academia e a vida ao ar livre em Miami. 

Quando me graduei na High School fui para Nova York, meus pais me ajudaram a comprar um pequeno apartamento em Manhattan. Minha vida tomou um novo rumo conforme quis a vontade do Universo. 

Nada é por acaso. Foi lá na grande Maçã que conheci Carol, uma linda e típica garota norte americana, olhos tristes azuis profundos. Quando a conheci ela parecia perdida na grande cidade, deslocada em meio ao turbilhão de veículos e pessoas que transitavam por suas ruas largas e túneis. Logo senti imediatamente uma atração irresistível por ela e a convidei para morar comigo. No principio ela resistiu, mas depois aceitou seu destino. Sua presença no dia a dia não me incomodava nem um pouco, era sempre muito silenciosa, tímida, não tinha parentes próximos para incomodar nossa paz, parecia esconder um grande segredo que temia me revelar. Após um dia estafante de estudo e trabalho contava os minutos para ao anoitecer voltar e encontrar Carol me esperando. Tínhamos um ritual só nosso estabelecido desde o primeiro dia. Quando chegava, preparava a mesa, acendia as velas, abria um bom vinho, colocava uma música romântica no cdplayer, para preparar a ceia com os melhores temperos, especiarias que só um país de primeiro mundo poderia proporcionar. Era quando avistava minha paixão, me olhando lá de dentro do freezer, sua cabeça com aqueles olhos, azuis profundos, um pouco assustados e tristes, como de costume, o olhar que desde o primeiro encontro havia aprendido a amar. É uma pena que ela esteja acabando, mas ainda sou um cara jovem, logo vou encontrar outro amor tão bom como esse para preencher o meu vazio. 

N. A. – Conto baseado em fatos reais.