domingo, 28 de outubro de 2012

O CANIBAL de MIAMI








Nada é por acaso. No Universo cada partícula, cada pequena porção de poeira cósmica tem sua posição exata e sua razão particular de existir no espaço infinito. Cada evento possui seu ordenamento pré-definido onde o livre arbítrio tem função limitada no conjunto dos acontecimentos que se sucedem e determinam as trajetórias de cada existência, dos corpos celestes aos homens. Sistemas solares e galáxias se devoram e novos corpos de matéria são criados. Sempre acreditei nisso como um preceito sagrado, uma fé interior, para atingir todos os meus objetivos na vida. Afinal de contas, somos ou não nada mais que poeira de estrelas? 


Pensando assim sempre sonhei que um dia moraria nos Estados Unidos, país de primeiro mundo, onde seus cidadãos recebem os melhores serviços e compram produtos de primeira qualidade, os melhores do mundo. Estava cansado da violência urbana no Brasil. Quando ia à escola ou saia à noite com os amigos sempre temia ser assaltado e já tinha perdido pelo menos dois pares de tênis novos de marca e uma jaqueta importada nas mãos de jovens ladrões em pequenos assaltos sofridos ao voltar da escola. Eu, um nerd, meio inseguro, franzino, tímido e estudioso era como um imã para menores assaltantes de rua. Quando meu pai foi transferido para Miami pela empresa multinacional que trabalhava fiquei como em êxtase, pois acreditei que as forças inefáveis que regem o Universo tinham finalmente olhado para nossa família. Meu pai arranjou um apartamento pequeno, mas confortável para nós em Downtown, que é como chamam o centro da cidade, no condado de Miami-Dade, e quando tinha uma folga íamos pela Causeway até Miami Beach pegar uma praia no fim de semana ou passear em algum Mall para fazer compras. Durante a semana eu estudava numa public school que nada se assemelhava com as escolas públicas do meu país natal, com seus professores bem remunerados e sua ótima estrutura de alto nível.De tarde eu costumava pegar a bike e atravessava a ponte que liga o centro em direção à Miami Beach no trecho reservado a pedestres e ciclistas que seguia paralelo à autoestrada e ia pedalando até a praia para ler, estudar e tomar um banho de mar ou ia até a Library na Lincon Road em busca de algum novo livro. 

Naquele sábado fatídico, que iria mudar para sempre a minha vida, peguei minha bike e pedalei em direção à Miami Beach. Atravessei o acesso da ponte seguindo pela ciclovia como de costume. A área mais próxima do centro, a região sob a ponte costuma servir de abrigo para os sem-tetos e viciados em drogas. Meu paraíso na terra não era tão perfeito como imaginava. Estava distraído com o movimento quando algo estranho perto da alça de acesso sob a ponte chamou minha atenção. Algo incomum, um homem nu estava debruçado sobre outro ser humano também nu que se contorcia no chão. 

- Hey man what’s happen? – gritei, ainda tentando entender o que acontecia, na intenção de prestar alguma ajuda se necessário, e então me deparei com uma cena que nunca mais iria esquecer. Foi quando pude presenciar uma das coisas mais horrendas que eu já vi na minha vida. O cara olhou na minha direção como um zumbi, com os olhos sem expressão, e vi que algo muito estranho estava acontecendo. Percebi que mastigava um pedaço de carne e escorria sangue de sua boca e bochechas. Ele então rosnou para mim de forma animalesca e continuou agachado sobre o corpo da vitima sem as bochechas, nariz, olhos e testa que tinham sido arrancados. Foi quando caiu a ficha. O cara estava comendo o outro. Gritei para que parasse, mas ele não deu bola e continuou seu ritual macabro sem se preocupar com o tráfico intenso de veículos e pessoas no lugar. Fiquei como que hipnotizado olhando a cena e pude observar que o agressor já tinha rasgado o rosto do outro com os dentes, era um homem nu que comia outro também nu em aparente estado de inconsciência, e o que estava por cima arrancava os olhos e a carne do rosto do moribundo a mordidas. De um salto, sem razão aparente e com um olhar de faminto, o homem se levantou e veio correndo em minha direção. Devo ter levado alguns segundos para perceber sua intenção de atacar-me e por instinto reagi, pulei para trás para tentar subir na bike e fugir, mas tropecei e perdi o equilíbrio indo ao chão. Meio tonto pela queda senti a ágil aproximação do monstro e uma dor lancinante percorreu minha perna que estava exposta, pois naquele dia calorento vestia bermudas. Foi quando ouvi tiros e desmaiei de pavor. 

Acordei meio zonzo no hospital, e logo percebi a presença de meus amorosos pais super preocupados. O médico de plantão olhava minha ficha e tentava acalmar os dois, pois o pior, explicava, já havia passado. Iriam fazer um implante na barriga da minha perna que tinha sido parcialmente devorada pelo agressor e ficaria somente uma pequena cicatriz. Ele demonstrou mais preocupação com o possível trauma psicológico causado pela agressão e sugeriu uma terapia de acompanhamento para verificar se não tinha adquirido sintomas de stress pós-traumático, comum nesses casos. Meus pais desde o primeiro dia evitaram o assédio da imprensa e proibiram o hospital de dar acesso aos jornalistas. 

Quando passou o efeito dos analgésicos pude ver TV e acompanhei pelas emissoras os desdobramentos do que tinha acontecido um dia antes, era uma multidão de policiais e especialistas que nas entrevistas tentavam explicar o que havia acontecido e depoimentos de testemunhas e familiares que relembravam os acontecimentos com horror e já tinham denominado o agressor de “Zumbi de Miami”. 

- Quando vemos esse tipo de conduta de pessoas nuas e que se tornam violentas, é um indicativo de um delírio causado por overdose - disse Armando Aguilar, um agente da polícia de Miami, ao cara da TV - O criminoso poderia estar sob o efeito de uma overdose de um novo componente do LSD, ou sofrendo de psicose provocada por abuso de cocaína, que pode levar a um comportamento homicida – disse o policia. 

- Quando chegamos ao local ordenamos que o agressor se afastasse do garoto, mas ele continuou o ataque e tivemos que matá-lo para proteger a vítima – disse um dos policiais que atendeu a ocorrência. 

- Nos últimos anos temos visto um grande aumento no consumo de substâncias ilegais consideradas como gatilhos de ataques brutais como a cocaína, o ecstasy e uma nova droga sintética vendida ilegalmente entre os viciados conhecida como miau-miau, uma mistura de substâncias alucinógenas com uma cadeia impronunciável de componentes químicos. Dois anos atrás, quando começaram a vender essa droga nas ruas foram relatados 300 casos. Este ano já são cerca de 6 mil, explicou o médico Paul Adams, do Jackson Memorial Hospital, em Miami ao cara da TV - Seu uso provoca paranoia extrema, agitação, alucinações e força incomum. - É muito difícil controlar alguém que tenha tomado estas substâncias. Eles ficam tão agitados e paranoicos, e apresentam um comportamento tão psicótico, que podem ser necessárias de seis a sete pessoas para controlar um homem de vinte e poucos anos e 70 quilos que tenha consumido essas substâncias porque alteram o limiar da dor. Eles são capazes de atacar as suas próprias famílias. E também golpear a cabeça contra a parede e cometer automutilação. - Quem consome essas drogas tem a sensação de estar queimando por dentro, então se despe, ou tenta se refrescar pulando na água. A taxa metabólica vai a 30% acima do normal e geralmente o usuário apresenta sintomas de desidratação - disse o médico 

- Ele foi drogado sem seu conhecimento ou foi vítima de um feitiço vodu, declarou chorosa sua atônita namorada - Eu não sei como explicar tudo isso de outra forma. Afirmou ao repórter que não acreditava em vodu até o incidente envolvendo seu namorado, de origem haitiana, que havia sido identificado pela policia como o agressor. Segundo ela, ele fumava maconha regularmente, mas tentava parar e nunca tinha experimentado drogas mais fortes. A jovem também o descreveu como um homem religioso e que nunca foi violento. Contudo, de acordo com relatórios da polícia de Miami em 2004 ele chegou a ameaçar a mãe e quebrar seus móveis durante uma discussão. A mãe, entrevistada pela emissora de televisão local, desconsolada assegurava: - Meu filho não era um delinquente. Todo mundo diz que era um zumbi, mas eu sei que não é verdade. - É o meu filho, declarou a mulher. 

Imediatamente o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos fez questão de alertar oficialmente que zumbis não existem. - O CDC não conhecia qualquer vírus ou condição que reanimaria os mortos (ou que apresentasse sintomas parecidos com de zumbis) - adiantou o porta-voz da instituição. A declaração foi feita devido à fama do caso do “Zumbi de Miami” e de alguns outros eventos estranhos que vinham ocorrendo em todo o país. No Canadá, a polícia procurava por um ator pornô suspeito de ter matado um jovem com um picador de gelo, esquartejá-lo, comer partes da carne e enviar pedaços do corpo por correio a Ottawa. 

No Estado americano de Maryland, um estudante de engenharia elétrica da Universidade de Morgan confessou que comeu o coração e parte do cérebro de um colega. Ele tornou-se suspeito do crime quando a polícia encontrou as mãos e parte da cabeça da vítima na casa dele. O resto do corpo da vítima, um homem nascido em Gana, foi encontrado em um recipiente de lixo próximo de uma igreja da comunidade. 

Com o passar do tempo a notícia do ataque, como ocorre normalmente nesses casos, havia caído no esquecimento do grande público. Após algumas semanas internado para fazer a cirurgia plástica de reconstituição resolvi fazer terapia conforme sugeriu meu médico e graças ao tratamento psicológico fiz uma mudança radical em minha vida. Comecei a “puxar ferros” em uma academia para aumentar minha autoestima e por sugestão da terapeuta fiz uma pesquisa profunda nesse assunto tabu que é o canibalismo, pois ela acreditava que só me confrontando com o problema eu poderia sublimar o trauma sofrido e encarar a vida de outra forma, resolvendo interiormente a agressão. Comecei a coletar notícias da imprensa na internet sobre eventos semelhantes e descobri que eram mais comuns do que imaginava e ocorriam com razoável frequência. Fiz um banco de dados do assunto e busquei algumas referências históricas. Logo percebi que historiadores e antropólogos relataram costumes semelhantes em todas as civilizações do planeta, inclusive a nossa, o que demonstra que o tabu contra a antropofagia surgiu recentemente na humanidade, nos dois últimos milhares de anos e o canibalismo é um instinto natural dos humanos, razão do tabu, e é responsável pelo surgimento de várias religiões. Até mesmo a religião católica contempla o devoramento da divindade no momento da consagração do pão e vinho onde comemos e bebemos a carne e o sangue do Cristo. Comecei então a estudar fisiologia para descobrir as causas da mudança na personalidade de uma pessoa sob o efeito de agentes químicos, naturais ou sintéticos, e descobri que o hipotálamo é a mais primitiva porção do encéfalo dos mamíferos que age eletroquimicamente sobre os neurônios do sistema límbico envolvido principalmente no controle das emoções. Também controla a temperatura corporal, a fome, sede, e os ciclos circadianos, quer dizer, o período de aproximadamente um dia (24 horas) sobre o qual se baseia todo o ciclo biológico de qualquer ser vivo influenciado pela luz solar. O ritmo circadiano regula todos os ritmos materiais bem como muitos dos ritmos psicológicos do corpo humano, com influência sobre, por exemplo, a digestão ou o estado de vigília, passando pelo crescimento e pela renovação das células. Essa pequena porção cerebral, o hipotálamo controla a temperatura corporal, o apetite e o nível de água no corpo, além de ser o principal centro da expressão emocional e do comportamento sexual. É nessa região do cérebro que normalmente atuam as drogas sintéticas ou aquelas produzidas naturalmente pelo organismo humano após, por exemplo, um trauma de grandes proporções, como uma psicose de guerra por exemplo. Impressionada pelo meu estudo a terapeuta teve certeza que podia me dar alta em definitivo. Eu me sentia bem tanto física quanto psicologicamente, minha insegurança juvenil tinha acabado e meu corpo tornou-se forte e musculoso com a academia e a vida ao ar livre em Miami. 

Quando me graduei na High School fui para Nova York, meus pais me ajudaram a comprar um pequeno apartamento em Manhattan. Minha vida tomou um novo rumo conforme quis a vontade do Universo. 

Nada é por acaso. Foi lá na grande Maçã que conheci Carol, uma linda e típica garota norte americana, olhos tristes azuis profundos. Quando a conheci ela parecia perdida na grande cidade, deslocada em meio ao turbilhão de veículos e pessoas que transitavam por suas ruas largas e túneis. Logo senti imediatamente uma atração irresistível por ela e a convidei para morar comigo. No principio ela resistiu, mas depois aceitou seu destino. Sua presença no dia a dia não me incomodava nem um pouco, era sempre muito silenciosa, tímida, não tinha parentes próximos para incomodar nossa paz, parecia esconder um grande segredo que temia me revelar. Após um dia estafante de estudo e trabalho contava os minutos para ao anoitecer voltar e encontrar Carol me esperando. Tínhamos um ritual só nosso estabelecido desde o primeiro dia. Quando chegava, preparava a mesa, acendia as velas, abria um bom vinho, colocava uma música romântica no cdplayer, para preparar a ceia com os melhores temperos, especiarias que só um país de primeiro mundo poderia proporcionar. Era quando avistava minha paixão, me olhando lá de dentro do freezer, sua cabeça com aqueles olhos, azuis profundos, um pouco assustados e tristes, como de costume, o olhar que desde o primeiro encontro havia aprendido a amar. É uma pena que ela esteja acabando, mas ainda sou um cara jovem, logo vou encontrar outro amor tão bom como esse para preencher o meu vazio. 

N. A. – Conto baseado em fatos reais.

Um comentário:

  1. O QUE CAUSA SURPRESA NESSES ACONTECIMENTOS FOI QUE A AUTÓPSIA REALIZADA NO ATACANTE EM MIAMI NÃO ENCONTROU NENHUMA DROGA SINTÉTICA NO SANGUE DELE E POSSIVELMENTE SEUS ATOS TENHAM SIDO MOTIVADOS POR UM SURTO PSICÓTICO EXTREMO

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