Onde morria o dia e começava a noite, numa esquina da vida, ficava localizado o Luanda Bar. O boteco era diminuto, de poucas cadeiras, mesas carcomidas pelo tempo, com imagens de São Jorge e Iemanjá e algumas máscaras nativas da África que adornavam suas paredes sujas, descascadas, com tijolos á mostra, cheias de limo, que desafiavam todo o bom senso e a higiene pública. Seu único banheiro era uma aventura a parte para os pobres frequentadores que tinham passado da conta e deviam evitar com cuidado o contato com suas paredes úmidas e madeiras sempre sujas caso tivessem o desprazer de utilizá-lo.
Nesse antro se reunia ao fim da noite a nata da boemia da cidade, uma verdadeira fauna de viciados, pequenos traficantes, bichas velhas, artistas e damas da noite já um pouco passadas nos anos que na madrugada, após as noitadas nas boites Coliseu ou no Flowers, os únicos redutos gay da cidade, ou da boite Pigmalião na João Pessoa, vinham degustar a iguaria do lugar, sua famosa “canja de galinha” que era divulgada aos quatro ventos, de boca a boca, pelos malandros, notívagos e pela turma da noite de poucos recursos.
Na época, em pleno regime militar, a cidade dormia cedo, como uma grande caserna, o toque de recolher do frio invernal levava a “gente de bem” depois do Jornal Nacional e da novela a se recolher embaixo de cobertores enquanto os pobres boêmios vagavam como zumbis entre um boteco e outro animados pelo pervitin e pelas anfetaminas importadas da Argentina, nessa época os gays eram chamados de veados, mas até mesmo a elite, a nobreza da cidade, visitava escondida seus redutos, talvez por falta de opção ou por gosto mesmo, ou iam na João Pessoa onde as casas da luz vermelha prosperavam muito antes do advento da Tia Carmem.
Mas era no fim da noite que o Luanda Bar tinha seu pico de frequência, pois todos que saiam das boates e gafieiras nas redondezas da Jose do Patrocínio procuravam o diminuto boteco quase na esquina da Venâncio em busca da sopa milagrosa que curava o porre de muitos.
Seu dono, seu Germano, era um negro forte e mal encarado, como mandava a tradição do lugar, sempre atrás do balcão servia as cervejas ou rabos de galo, sem muito assunto. Enquanto isso dona Josefa, sua franzina esposa, lá do fundo, onde chamavam de cozinha, preparava e cortava os temperos daquela dádiva dos deuses que muitos esperavam ansiosos.
Certa noite, lá pelos idos dos anos 70, o bar como sempre enchia aos poucos, e nas suas mesas estavam sentados alguns dos frequentadores mais assíduos, logo no canto “Cabelo” o “vapor” da zona reunia seus clientes, outros viciados, para uma “saideira”, pois eles faziam questão de fazer uma “presa” para o seu fornecedor pagando do próprio bolso algumas “cervas”, já totalmente alterados e com os olhos esbugalhados pela química. Na outra mesa, duas bichinhas velhas iam pagando cervejas, undebergs e pedindo tremoços para acompanhar as biras, pois tentavam seduzir dois moleques com cara de zumbis, completamente “chapados” e confundir a cabeça dos moços atraentes. Na mesa do outro canto estava sentada Florisnalda, ou melhor, “Jane Fonda” como era chamada pelas colegas e clientes, cada vez mais raros. Ela esperava após o árduo e cansativo expediente noturno na boite e umas poucas micharias ganhas à duras penas e alguns boquetes tomar seu caldo para voltar para casa no primeiro ônibus que passasse na madrugada que recém acordava. No centro, como sempre, sentava o velho professor universitário, que havia sido cassado pelo AI-5, e que sempre que enchia a cara, o que era quase todo o dia, discursava pela rua contra o regime até levar umas bordoadas de algum brigadiano raivoso, para poder se acalmar. Foi quando chegou um jovem de cabelo longo, barbudo, com aqueles óculos de John Lennon e aquela bolsa de lona militar indefectível, que distinguia os estudantes hippies e intelectuais subversivos dos jovens de boa família cristã. Pediu uma cerveja para o sempre mal humorado dono do bar e sentou sozinho em uma mesa. Parecia nervoso e olhava a porta do bar a todo o momento. Após algum tempo foi até o seu Germano e cochichou-lhe algo no ouvido recebendo um sonoro não como resposta o que fez com que o rapaz em pânico voltasse ao seu lugar. Seu Germano, por alguma estranha razão da consciência dignou-se então a ir até a cozinha confabular com sua esposa e logo uma discussão entre os dois podia se ouvir:
- Ele poderia ser nosso filho Germano! Ajude o menino, nóis cemo gente de bem, não vamu deixá uma desgracera dessas acontece.
Seu Germano saiu desacorçoado da cozinha, pois tinha grande respeito pela opinião da companheira, e chamou de novo o rapaz conduzindo-o para o fundo do bar, onde ficava o banheiro vicentino que era adjacente ao depósito onde guardavam os restos dos galos pretos, matéria prima indispensável para o prato principal da casa, e voltou sozinho das catacumbas que seus fregueses pouco conheciam, lugar sinistro, fora do entendimento dos frequentadores, que preferiam não perder a magia da degustação com a desilusão de uma realidade além da sua imaginação e que os fiscais sanitários, na época também “não viam”.
Passado alguns minutos entraram dois sujeitos com armas na cintura que pela cara denunciavam sua profissão de “ratos”, que era como se chamavam e ainda se chamam as autoridades policiais, um com cara de fuinha que de fato parecia uma ratazana de pescoço comprido e outro que tinha cara de abestalhado compensada com os fortes músculos que impunham respeito e ocupavam toda a estreita saída do bar. Logo que entraram se interromperam as conversas e eles já foram anunciando a sua oficial presença:
- Policia Civil, é o DEOPS pessoal, tamos procurando um cabeludo de bolsinha, um comunista subversivo que estava colando panfletos na UFRGS agora de noite. Um cidadão disse que ele veio para esse lado. Alguém viu?
Silencio total, ninguém esboçou reação alguma, até o professor sempre do contra e espevitado calou-se, pois se reclamasse sabia que, com sua ficha, qual ia ser o seu destino, ser esgarçado a porretadas, no pau de arara em alguma delegacia insalubre, como já havia acontecido antes com ele. Todos de uma forma ou de outra já tinham sentido na pele a força da ditadura, ditabranda, como diziam alguns. Todos carregavam no lombo as lembranças dos “carinhos” feitos pelos “ratos” que tudo podiam com o povo comum e por isso resolveram se calar em perfeita cumplicidade.
O cara de fuinha resolveu revistar o fundo do bar, seu Germano olhou para baixo do balcão em busca do seu machado de cortar pescoço de galinhas e do seu porrete que sempre tinha à mão para acalmar os mais exaltados pela bebida e imaginou uma peleja dura caso o rapaz fosse descoberto. “Cabelo” e seus colegas de vício, todos “ligados”, se coçaram entre enfrentar os dois ou fugir dali caso a coisa esquentasse. As duas bichinhas se encolheram ao lado dos bofes, que pouco entendiam o que estava acontecendo pelo alto nível etílico. Quando o “rato” seguiu para o fundo da espelunca todos prenderam a respiração imaginando o pior.
- ARRRGHH! Que banheiro fedido, que porcaria, parece até que tem alguém morto aqui dentro – Disse o polícia que após uma olhada de leve, desistiu da revista e deu um passo para trás, com medo do depósito de lixo infecto que exalava o cheiro dos resíduos da canja. Não valia a pena sujar suas roupas, a calça Lee recém-importada de contrabando, naquele buraco sórdido.
Saiu injuriado dos fundos do bar e olhou vagarosamente para cada um dos presentes tentando flagrar um pequeno sinal que denunciasse estarem escondendo algo dele, com sua acurada percepção profissional forjada da repressão desse povo marginal que habita a noite e que muitas vezes havia colocado em seu devido lugar nos porões do Palácio da Policia. Nenhuma reação da escória. De fato pareciam estar só bebendo e até mesmo seu Germano assumiu um ar fingido de negro bossal, que pouco entende as palavras dos brancos, enquanto sua esposa, sem perturbar-se, continuava na confecção de sua canja mágica.
Os dois foram embora não sem antes ameaçar chamar a vigilância sanitária para interditar aquela pocilga. Um minuto de silêncio trespassou o bar, era um momento mágico, como se o Divino Espírito Santo houvesse descido ali, naquele momento, e sua chama tivesse brilhado por instantes na cabeça de cada um dos presentes; velhos marginais, viciados, bêbados, prostitutas, todos irmanados por uma justa causa que é a humanidade. No fundo do bar, baixinho Florisnalda rezava: - O Senhor é meu pastor, nada me faltará...
Logo a canja ficou pronta e todos se serviram, e o rapaz foi trazido pelo seu Germano direto das catacumbas, do fundo, como um herói mal cheiroso ressuscitado, e foi aplaudido por todos. Dona Josefa serviu o quase menino na cozinha, como uma mãe serve um filho que retorna de uma longa jornada, sem se importar pelo fedor. Ela estava especialmente numinosa, como uma santa padroeira desses brasis, e seu Germano como Xango, orixá guerreiro, com seu machado de cozinha, cuidava a porta para ver se os “ratos” não davam uma incerta. Todos se sentiam eufóricos e vitoriosos, queriam por que queriam pagar a conta do guri, mas seu Germano anunciou que seria por “conta da casa” desde que o comunistazinho, como chamava o rapaz, não voltasse mais ali.
Tudo isso se passou, como relatei, foi lá pelos idos dos anos 70, na época da Ditadura, ditabranda, que matava e violentava as pessoas nos seus porões imundos. Foi um banheiro sujo de boteco e um bando de malfeitores que salvou aquele rapaz do pior. O Luanda Bar já não existe mais, em seu lugar está instalada uma loja dessas tatuagens da moda, moderna e bem limpa. Nada lembra aquele passado de terrores noturnos e festas furtivas. Juro por Deus meninos. Eu vi...