Ele não sabia. Sentia o gosto
amargo de mais uma manhã que iniciava calorenta enquanto vestia seu surrado
terno para seguir para o trabalho. A única coisa que não saia da sua cabeça era
a comissão devida que ainda não tinha recebido, pois o financiamento da cliente
não tinha sido aprovado por enquanto e conforme o andar da carruagem ficaria
sem essa grana para pagar a pensão alimentícia dos filhos e não tinha cliente
algum para vender aquele apartamento da esquina que tinha se comprometido a
vender para os proprietários. Olhou para
o espelho do banheiro, para aquela figura patética com a boca banguela e
precisando de cuidados, imaginando que quando recebesse algum dinheiro poderia
ir ao dentista para tentar um tratamento e colocar algumas próteses. Despediu-se da companheira, que como sempre,
era tolerante com suas flutuações
constantes de humor. E partiu para mais uma jornada na loja da imobiliária,
mais um plantão, quando tinha que atender clientes potenciais de imóveis.
─ Onde a senhora viu o imóvel? Ah
sei, tem uma placa Qual o endereço? Não sabe? Sim senhora, eu deveria saber
(mas minha bola de cristal está meio estragada – pensou ) Não se preocupe, sem problemas, assim que localizar ligo de
volta. Obrigado por ter ligado!
Essa era a rotina, entre cada cem
atendimentos, um ou outro cliente com potencial real de compra. O ambiente de
trabalho era limpo, asséptico, uma bancada cheia de monitores com seus
operadores humanos atendendo, ligando, tentando captar novos clientes, abusando
do café e reclamando da vida. Só os idiotas acreditavam na meritocracia da
empresa que não pagava nada, nem um centavo a mais para ter aqueles cretinos
enchendo o saco das pessoas do outro lado da linha, pensava com uma ponta
de sarcasmo.
No fim do turno da manhã se
preparou para sair, para comer alguma coisa e foi quando seu celular tocou, era
a irmã. Só conversavam quando algo acontecia de estranho na família, algum
evento importante, ou quando ela o convidava para alguma festa familiar, o que
sempre acontecia na casa dela. Naquele dia a notícia não era nada boa:
─ Ela está no Hospital, dessa vez
o médico disse que é grave. Talvez não resista por muito tempo.
Saiu da imobiliária meio
transtornado, o hospital não ficava muito longe. Não se lembrava quando tinha
sido a última vez que tinha tido contato com a mãe. Achava que tinha sido no
Natal. Detestava visitá-la na clinica geriátrica. Não pela pessoa dela. Tinha
um profundo carinho pela mãe. Mas detestava vivenciar a velhice, o fim de
vitalidade que os corpos das pessoas apresentam com o adiantado dos anos, a
demência das idosas agarradas em suas bonecas ou balbuciando palavras
desconexas, pessoas sem vigor sendo levadas pelas mãos das enfermeiras, o
cheiro da velhice que recende a mijo seco e fraldas descartáveis, tudo aquilo
que causava um efeito opressivo e levava um tempo para levantar o astral dele
depois de cada visita. Por isso tinha que se esforçar para visitá-la e sentia
vergonha do seu egoísmo.
Encontrou-a deitada na cama do
hospital, na UTI, depois de uma longa espera.
A falta de recursos da família obrigou baixá-la em um hospital público,
mas que era referência em tratamentos similares. Ela estava lúcida, falou que
queria ser logo transferida para o quarto, que a cunhada, esposa do irmão
teria gosto de ficar com ela, pois gostava daquele ambiente hospitalar, coisa
que ele internamente duvidou. A voz dela,
apesar da tosse constante e o respirador que era obrigada a utilizar, estava
clara. Ela procurava parecer tranquila, já tinha sido internada outras vezes,
era uma sobrevivente com quase 80 anos de várias moléstias anteriores. O comportamento dela era estoico, nada poderia ser diferente, já que a situação se apresentava inexorável, já fazia parte de sua rotina de vida na velhice e ela tentava
mostrar-se despreocupada. Ele saiu de lá preocupado. O ambiente hospitalar
também era opressivo. Já percebia que aquilo iria ser um transtorno para sua
vida, seus negócios, ia perder o foco dos clientes, seria difícil atingir suas
metas na empresa, maior preocupação.
No segundo dia foi visitá-la e
encontrou-a sedada, tinham colocado um tubo que chegava até sua traqueia para
auxiliar sua respiração que tinha piorado. Vários equipamentos tinham sido
adicionados e faziam ruídos estranhos conforme sua respiração ocorria e seus
batimentos cardíacos e pressão sanguínea mudavam em números e gráficos
incompreensíveis. Sentiu-se impotente, não sabia o que fazer. Rezou uma prece.
Sua mãe nunca tinha sido pessoa de externar carinhos extremos, tinha sido
carinhosa, de seu jeito particular. Lembrou-se de quando criança nas suas
crises de bronquite, quando também tinha dificuldades para respirar, os afagos
da mãe que preocupada tentava fazê-lo dormir. Ensaiou uns cafunés naquela
mulher frágil, notou-se conversando com ela, falava palavras de consolo e ficou
assim até o momento que chegou a enfermeira e pediu que saísse, pois o horário
de visita havia terminado.
Na primeira semana parecia estar melhor,
estava de olhos abertos, tinham tirado o tubo. Tentou conversar, mas sua voz
estava fraca. Ela tentava dizer algo. O que seria? Ela o olhava com aquele
olhar triste de abandono e balbuciava algumas palavras ininteligíveis. Parecia pedir
algo, mas ele não conseguia entender. Antes de sair perguntou aos irmãos o que
poderia ser que ela queria dizer, nenhum deles sabia. Diga-se de passagem, que
ele era o filho mais relapso, seu irmão caçula sempre estava ao lado da mãe,
cuidando dela, visitando-a na clínica, tinha sido o irmão que tinha conseguido
interná-la naquele bom hospital. A irmã também era sempre atenciosa, quando
podia levava a mãe para estar junto nas festividades da família. Ele era o
escroto, um péssimo filho, que tinha medo dos velhos da clínica, e que evitava
hospitais como o diabo foge da cruz. Isso, esta constatação de sua fraqueza
interior revoltava-o. Tinha raiva e pena dele mesmo. O médico deu uma péssima notícia. Teriam que
fazer uma traqueotomia nela para liberar sua respiração. Não poderia mais
falar.
Na segunda semana tentou se
comunicar com ela, levou um caderno de desenhos, tentou fazê-la escrever.
Queria saber o que ela queria pedir, o que ela balbuciava sempre quando ele
estava ao seu lado, seria um capricho de quem percebeu a seriedade do próprio
estado? Ao colocar a caneta na sua mão ela só escrevia rabiscos
incompreensíveis. Ele escreveu para ela palavras de consolo:
VOCE QUER IR EMBORA ? ESSE FOI O
MELHOR HOSPITAL QUE CONSEGUIMOS
ESTÁ SE SENTINDO MELHOR? SIM –
UMA PISCADA. NÃO, DUAS PISCADAS
TEM QUE PENSAR SÓ EM COISA BOAS
APROVEITA PARA DORMIR BASTANTE E
RELAXAR. NÃO ADIANTA FICAR NERVOSA
TODOS OS DIAS FALAMOS COM O
DOUTOR E POR ENQUANTO ELE NÃO PODE TE DAR ALTA
AGORA VÃO DEIXAR VC. DESCANSAR
ATÉ FICAR BOA. TEM QUE TER PACIÊNCIA.
VOCE QUER PERGUNTAR ALGUMA COISA?
EU TE AMO e fez um desenho de um
coração mal feito. Uma garatuja.
Na terceira semana quando ia
visitá-la notava o olhar, antes sempre observador, aquele olhar perscrutador de
ave de rapina, uma característica que sempre tinha admirado na mãe, agora
estava sem vida, embaçado, olhando o vazio. Ela ainda balbuciava as mesmas
palavras. Nunca conseguiu restabelecer algum tipo de comunicação. Tentou
escrever todas as letras do alfabeto e pedir que ela indicasse aquelas das
palavras que não podiam ser mais ditas. O sistema de piscadas logo deixou de
funcionar. Só restava ficar ao seu lado, acariciar sua cabeça branca, rezar
para que Deus tivesse piedade daquele corpinho frágil que estava ligado a
vários equipamentos com sons cada vez mais abomináveis e descontrolados.
Na quarta semana os problemas
cotidianos pareciam ter outra dimensão. Todos na família estavam com nervos à
flor da pele. O sofrimento da mãe era cada vez maior. Os médicos tinham
detectado um edema pulmonar grave. Nenhum procedimento poderia salvá-la. Só
podiam dar algum conforto para ela, nada mais. Ele estava estranho, já tinha
ficado assim antes. As preocupações normais da sua atividade pareciam não ter
mais valor algum. Estava travado, sem vontade de discutir questões de negócios
e muito menos atender aqueles clientes idiotas com suas necessidades mesquinhas.
Viu-se só, sentado num café, sentindo-se indefeso perante a vida. Resolveu
aquele dia não ir visitar a mãe. Marcou uma consulta ao seu médico que não podia
atendê-lo no dia e outro o atendeu no centro médico. Falou dos seus sintomas,
de sua falta de vontade de ir para a rua trabalhar, de seu desinteresse pelos
negócios e o médico prontamente receitou aquelas mágicas pílulas que tornam as
pessoas felizes e produtivas, como um passe de mágica, à la Admirável Mundo
Novo.
No dia seguinte, pela manhã, uma
ligação urgente da irmã, por fim o descanso final da lutadora. A vida tinha
abandonado aquele corpo para ele tão querido e desamparado. Seguiu rápido para
o hospital. Levou alguns minutos para que as burocracias fossem cumpridas.
Levaram-no até a morgue. Lá estava sua mãe deitada, um corpo vazio e sem vida.
Desabou um choro incontrolado abraçado na companheira. Por fim nunca saberia o
que sua mãe queria dizer nos seus últimos dias de vida. Seria um insight? Uma
sabedoria de alguém que percebe o fim próximo? Ele nunca saberia.
Afinal das contas, com o quê sonham os tigres ?
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